quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Golpe mortal

Falta luz na minha cidade toda vez que você não passa.
E não tem prédio que se segure em pé.
Criança alguma evita o choro, cachorro algum evita latir, o pedreiro não para de quebrar a calçada.
Pelo contrário, é sempre de muito barulho a sua ausência.
Mas isso na rua, com os outros, porque em mim é tudo oco.
As borboletas todas hibernam toda vez que você não passa.
E meu coração vai desacelerando, à medida que não te vê.
Mas quando você não não fala comigo e torna a não falar,
Eu vou quase morrendo, de pouquinho em pouquinho,
nos espaços entre os seus silêncios.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Cadê você que não está aqui comigo?

Eu sei que você está toda esquisita, e, em parte, eu entendo. Acontece que eu estou precisando de um lugar para recostar a cabeça, um abraço despretensioso e alguém que escute o meu silêncio, sem picuinhas. Com a bandeira branca e o orgulho no lixo, te escrevo estas linhas. Você pode ignorar, fingir que não viu e seguir a vida. É uma possibilidade. Mas primeiro atiro a pedra para depois ver se quebro ou não o vidro. Acho que só de você estar lendo esta mensagem, já me sinto em parte abraçado. Não sei porque, mas estou triste.
ps: espero que não se importe de ter tornado do mundo o que era só de dois.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

O que aprendi com Tracy


   Quando mais novo, dividia espaço com uma husky siberiana de nome Tracy. Na verdade, o espaço era dela e eu o invadi quando nasci. Ela reinava no terraço já fazia uns três anos quando eu apareci. Fazia dali seu reino e marcava território com ossos, bolinhas e algum punhado de ração. Tracy era a dona da casa e, eu, um intruso.
   No começo nos estranhamos. Ou melhor, ela me estranhou. Protegido pelos muros maternos, ela não era capaz de rompê-lo e ver a criatura que existia por trás dele. Era alguém que chegara tirando espaço, atenção e carinho. E ela, tudo que podia fazer, era me olhar de longe para tentar compreender porque perdera, de uma hora para outra, todo seu patrimônio. Agora era espaço para dois. Carinho para dois. Uma linha no meio separando os dois mundos. Era tudo meio humano, meio animal. E assim o tempo foi passando para os dois.
   Eu engatinhando e ela crescendo. Viciei na chupeta e ela crescendo. Eu andando e ela crescendo. Eu entrei na escola e ela crescendo. Passei do gemido ao bê-á-bá, abandonei a chupeta para me viciar na mamadeira, e ela crescendo. Parei de fazer xixi na cama, parei de procurar a cama dos meus pais, conheci a programação da TV e ela continuava crescendo.
   Até que um dia eu aprendi a correr com as próprias pernas e ela teve medo de descer as escadas. Aprendi a nadar e ela passou a fugir da água. E aprendi a andar de bicicleta, mudei de endereço e descobri que não levava jeito algum para andar de patins. E ela, continuava a mesma. Não havia mudado nenhuma parte. E então eu percebi que, a partir de então, quem crescia era só eu. Ela, agora, estava envelhecendo.
   Eu descobria, ela esquecia. Eu saía, ela ficava. Eu corria, ela parava. Eu gostava, ela resmungava. Eu mexia, ela empurrava. Lambia meu afeto mas rosnava para o meu carinho. Como um lobo que renega a matilha, nunca mais foi vista pela rua. Era agora refém de sua própria companhia. Todas as noites admirava a lua e gritava com seu uivo, como quem se cansa da vida e pede para ir embora. Assim foi Tracy quando atingiu os quatorze humanos anos. Já carregava em seus grisalhos pêlos nove e tantas décadas caninas. E dizia isto por seus olhos bicoloridos que, a essa altura, já estavam cansados de ver. Chega uma hora em que se enxerga melhor de olhos fechados.
   Certo dia, Tracy amanheceu estranhamente cansada. Acordou com a cabeça sob o pote de comida. As patas sustentavam o já cansado corpo, que chorava como quem não agüenta mais sustentar a própria alma. Seu rim parou de funcionar e ela queria urinar. Tracy queria comer, mas seu estômago já não se alinhava com o resto do corpo. Tracy estava cansada da vida. Tracy pedia por seus olhos para morrer. E foi então, numa bela manhã de sol, que Tracy, nos braços de meu pai, se despediu da vida.
   Não deixei acontecer. Não conseguia entender o que estava acontecendo, mas não ia deixar ela ir embora assim. Não agora. Lembro que pedi para ela parar de ficar velha, afinal, chegaria uma hora em que a gente ia poder envelhecer juntos. Pedi para ela levantar. Pedi para ela parar com aquela brincadeira. Na minha cabeça, Tracy brincava de morrer. Ela não viu o Natal daquele ano, nem o ano novo que em breve começaria. Tracy não ia mais usar coleira. Não ia mais ganir tentando fugir do banho. Não ia mais uivar para a lua. Nunca mais me veria fazer aniversário. E crescer mais. E depois envelhecer como ela. Tracy não veria nada mais a partir daquele último suspiro. Assim como uma luz que se apaga, seus olhos eram todos escuridão.
   Andei pela casa catando todos os cabelos caídos de seu corpo morto. Pêlo por pêlo, amontoava-os em minha mão. Coloquei todos embaixo de meu travesseiro. Minha mãe tentou impedir. Perguntou, em meio à cara chorosa, o que eu faria com aquilo. E eu respondi que ia fazer uma outra Tracy igual. Cabelo por cabelo, ia construindo Tracy na minha cabeça. Ia trazê-la de volta. Ainda que não fosse capaz, tentaria. Inventava seu novo jeito. A cor dos olhos que ela teria. A extensão de seu corpo. A disposição de sua corrida. Já estava pronta na minha mente.
   Já amava o que nem conseguia ver. E já cansava de imaginar seu pique. Já ria de suas manhas. Tracy era real, ainda que fantasiada. Eu já amava o que só existia na minha imaginação.
   Um amor inventado nem sempre é mentira. Aprendi com Tracy que inventar já é, quase sempre, um ato de amor.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Quando a mulher é mais bonita

  Existe um engano muito comum na maioria das mulheres, que é o de achar que a beleza nasce do esforço. Minhas caras, não se enganem. Equivocadas, entopem a cara e os poros com pós importados, que fazem companhia para outros tantos pós multicoloridos. No final, parecem vir de alguma peça de teatro Kabuki. Parem com essa ideia de achar que uma calça que sufoca as pernas e começa a nascer embaixo do cóccix é a realização da sensualidade. Não é!
   A beleza não mora no pó, no lápis, no batom e nem em coisa alguma desse tipo. A sensualidade não se fortalece em decotes extravagantes ou calças de cintura tão baixa que chega a mostrar até um ou outro pelo púbico. A beleza feminina não está aí.
   A mulher não é mais bonita quando coloca brincos enormes, salto alto e uma saia presa com cinto que quase beira o pescoço. Não é isso que faz a mulher mais bela.
   O que faz de vocês, mulheres, mais belas, é exatamente o oposto disso tudo. Não é o quanto se arrumam, mas o que deixam de fazer. A mulher é mais bonita quando usa calça jeans e uma blusa branca. A mulher é mais bonita quando prende o cabelo quando faz calor e deixa escorrer o suor pelo pescoço. A mulher é mais bonita quando ri de um jeito diferente e expõe seu pescoço. Poucas coisas são mais sensuais do que expor o pescoço enquanto o dedo passa pelo cabelo.
   Sinto pena daquelas mulheres que perambulam completamente enfeitadas, andando por aí feito árvores de natal. Mulheres, embora as revistas e programas de televisão queiram convencer-lhes disso, a beleza não existe no que se faz para parecer bonita.
   A beleza não mora na roupa cara, na maquiagem cara e nem no sapato caro. A mulher é mais bonita quando conta uma piada para os seus amigos. A mulher é mais bonita quando é carinhosa com quem não se espera que ela seja. A mulher é mais bonita quando é educada e sabe pedir a conta para o garçom sem parecer deselegante.
   A mulher é muito mais bonita quando não se acha bonita. E usa aquela blusa velha na sua frente, sem ficar com medo do que você vai pensar dela. 
  A mulher é mais bonita quando sua beleza não vem do que ela carrega em si, mas consigo. A mulher é linda quando sua beleza transborda de dentro para fora. Porque a beleza, mulheres, mora na despretensão.
                                                          Foto: Geoffroy Demarquet

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Miniconto da porcelana

A boneca do pote de vidro jamais saiu de seu mundinho de porcelana.
E preferiu a vida desgraçada daqueles que só se levantam com o pé direito. Sua vida miserável a confortava. E branca, pálida e fria, como o mármore, morreu feliz e enganada, como todas as bonecas.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Não perco essa mania

Eu pensei em voltar a sua rua, bater na porta e dizer que estava arrependido. Pensei em deixar o orgulho de um lado, a vergonha do outro e tocar a campainha como se começasse agora. Assim mesmo eu te convidaria, para começar tudo agora. Não é questão de voltar atrás, nem de persistir no erro. Acontece que pensei em você semana passada. E na outra também.
Na verdade, penso em você quase que todos os dias e por isso pensei em voltar e te contar isso. Não sei se adiantaria alguma coisa, já que ouvi dizer que você não quer nem ouvir meu nome. Outro dia fingi que te ligava por engano, só para ouvir você dizer que eu não perco essa mania de te procurar. Você não atendeu e eu percebi que devo gostar de perder meu tempo com você.
Se eu pedisse para alguém lhe interfonar, dizendo que esperava aqui embaixo, será que você desceria? Quase joguei uma pedra na janela do seu quarto. Será que te acertaria o coração? Pensei que você pudesse abrir a porta e me servir alguma coisa. Pensei em, quem sabe, pegar a sua mão e te fazer lembrar de como você ficava quando eu fazia isso antes. E se, de repente, eu fosse entrar na sua casa? E se, por acaso, eu não saísse mais da sua vida?

sábado, 20 de novembro de 2010

Vivendo - e morrendo - segundo as regras... gramaticais!

Paulo era um sujeito simples, nada diferente desses que se encontram em qualquer esquina. Embora aparentasse, porém, não era nem de perto esses comuns. Era substantivo próprio de si e de suas vontades. Não deixava nenhuma no final da frase.
Até que um dia encontrou Maria Elisa. E não tardou para o sujeito se transformar. Viu a moça uma ou duas vezes e foi o suficiente para se render aos seus predicativos. Mudou de número, de grau e desde então, só pensava em ser composto ao lado dela. Mudou até de lugar, procurando seu espaço na oração de Maria Elisa. Mas ele não era bobo e foi logo montando a cena. 'Eu, tu e toda a felicidade do mundo' foi o que propôs a moça sem nem saber se ela tinha ou não complemento. Pobre do Paulo de pensar que aquela morfologia toda não teria já alguém que a classificasse.
Aludiu, citou e até definiu, mas nada era capaz de despertar a feição da moça. Maria Elisa não era dessas preposições que se engraçam com qualquer sujeito não. E Paulo, só não mudou de gênero porque era dessas regras que não admitia exceção. Botava uma coisa na cabeça e ia até o sufixo da questão.
Sem conseguir por força de suas próprias derivações, nosso amigo, que nunca foi subordinado, prestou-se a fazer algumas orações. Pensava que 'se Ele existe mesmo, vai me conceder a graça de Maria'. Mas não teve efeito algum, afinal, Maria Elisa já tinha seu sujeito oculto – que Paulo, sem nem conhecer, já considerava-o bastante indeterminado.
E quase cheio de suas próprias tentativas, falou com a tal da Elisa num tom oblíquo que só ele conseguia. Cansado de enrolação, foi até ela para colocar um ponto final – ou reticências, já que dependia da vontade da mocinha. Disse que não era de se abater por qualquer conjugação, mas não suportava a ideia de viver um amor coletivo. E mandou ela decidir: eu, contigo, ou tu, sem ninguém?
Curiosa a história de Paulo. Ele nunca foi dessas abstrações de amor, mas depois de Maria Elisa, não pensava em uma só coisa concreta. E foi por isso, também, o seu fim. Depois de colocar exclamação na vida da pobre moça, resolveu, também, terminar a própria história.
Armou-se da coragem dos artigos definidos e com um desses objetos indiretos, morreu. Intransitivo que só ele.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Mar e Cela

Já cruzei outros oceanos
Noutras embarcações até bem melhores do que esta
Mas agora é diferente
Pareço atravessar uma arrebentação inteira
Num barquinho desses de papel
Teu mar é minha cela
Me prendi na tua correnteza

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Velho como um fusca

Não quero morrer velho de espírito jovem. Não quero me poupar de nada. Quero rir toda vez que minha barriga quiser doer e chorar toda vez que tiver vontade. Não quero me preservar de desgaste.
Quero destruir todas as amizades que forem precisas para descobrir todos os casos de amor que possam estar escondidos nelas. Não quero evitar nada.
Não quero me acostumar com o sofrimento das pessoas. Nem com o mau-humor de ninguém. Quero viver amando e me decepcionando. Quero todas as decepções que eu puder ter. E que cada decepção não diminua, mas reerga meu amor.
Quero aprender tudo que eu conseguir. E ter a certeza de que cada aprendizado novo me abrirá uma infinidade de outros tantos, que eu também desejarei aprender. Não quero me privar de nenhum desejo.
Não quero chegar velho sem arranhão na lataria. Quero velhice com amassado, banco rasgado e sem estofamento.
Não quero morrer velho de espírito jovem. Quero morrer um fusca bem antigo, com a porta empenada. Que cada batida defina a nova sinfonia. Quero dançar ao som da orquestra de uma porta empenada. E tropeçar todas as vezes que minhas pernas enroscarem nas tuas.
Quero morrer um fusca velho. E com a alma calejada.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Mudo

Se calado come-se duas vezes
E se esteve certo quem contou
Divina benção é não falar
E aproveitar o amor que não se espalhou.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Não demora

Seja aonde estiver, que chegue logo. Não precisa pensar duas vezes, não fique deduzindo o que é certo ou errado, apenas venha. Venha que não me aguento de esperar. Já sinto teu cheiro de longe, como bolo posto na janela e que faz cheirar em todo o quarteirão. Vem logo, que eu quero te mostrar uma música que eu descobri. Não demora.
Esqueça o que passou. Se vai ou não ficar alguma coisa pelo caminho. Se existe ou não alguém que você terá que deixar para vir. Não importa. Faça o que for preciso. Mas venha. Rápido. Quero dividir a vida.
Quero brigar pela porção de fritas, pela Coca-Cola que está no fim, pelo chocolate que você ganhou na páscoa, pelo filme que vamos alugar. Quero lhe contar o meu dia, ouvir o seu e te segurar pelo braço quando você atravessar o sinal sem perceber que ele está aberto. Quero te segurar para sempre.
Quero ter dúvidas, mas não suportaria viver só imaginando como teria sido se você estivesse aqui. Você é minha única certeza. Então venha, a hora que for. Venha que eu estou esperando.

domingo, 24 de outubro de 2010

Considerações finais

Detesto despedida porque gosto de estar junto, de falar perto, de puxar a cadeira e já ir me sentando. Detesto despedida que me força a estar longe do que quero. Ou melhor, de que não quero estar longe. Despedidas colocam entre mim e o outro um muro chamado distância. Alto. Imponente. Quase que impenetrável.
Detesto despedida porque preciso da voz. Não me perdoo quando esqueço uma. O sentir da boca desenrolando o som no ouvido é algo que eu quero e preciso, sempre.
Odeio despedida quando sou eu quem me despeço. Aliás, em toda despedida, a gente sempre acaba tendo que se despedir mesmo, sejamos nós os que partimos ou não.
Detesto despedida, principalmente, quando não consigo dizer tudo que gostaria. Odeio despedida que me deixa arrependido depois. Odeio despedida que não me tira todas as palavras. Se é para ir, que vá. Mas que vá com tudo que eu precisava deixar.
Detesto despedida que não me pede rescisão de contrato. Aquelas que vão como se não tivessem nada para dividir. Odeio despedida que me cobra a prazo. Detesto despedida que parece indiferente. Odeio despedida que não parece o fim.
Detesto despedida porque não gosto de estar longe. Odeio despedida porque gosto de você.

sábado, 23 de outubro de 2010

Mania de cozinheiro apressado

Sou ansioso com texto. Basta começar um e já fico afoito pelo final. Não pode ser qualquer desfecho. Não me contento com qualquer história. Imagino um texto como um um prato. Torná-lo bom ou não é ofício do cozinheiro. Selecionar os ingredientes, misturar no momento certo, para, no final, fazer tudo ficar saboroso, não é trabalho fácil. Nenhum trabalho é fácil. Um prato bem feito, assim como o texto, são ambos irresistíveis. Difícil é torna-lo assim. Difícil é fazer um texto que te devora pelo olho. É ele quem te convida a comer.
Na arte da gastronomia, sou um irremediável amador. Meu prato nunca fica com o gosto que eu queria. E basta tornar a olhar, para querer mudar o tempero. Botar um pouco de sal aqui. Deixar um pouco mais doce. Misturar com um tanto de limão. Refazer tudo.
Busca interminável pela satisfação, acabo servindo do jeito está. Não me permito alterações. Sou ansioso com texto.
Mania de cozinheiro apressado, não consigo esperar sair do forno. Sirvo sempre cru. Ou passado demais. Jamais cheguei ao ponto.

sábado, 16 de outubro de 2010

Sagrado ofício

Escrever é meu dogma. Sempre foi. Escrevo para me exorcizar. Fazer um texto é meu altar. As palavras são meus santos, que eu coloco ordenadamente no lugar. Rezo para cada uma delas. Cada qual tem seus caprichos, não posso trocá-las umas pelas outras. São Miguel não casa ninguém. Santo Antônio não tinha cachorro. Não são todos iguais. Assim como elas.
Escrever é exercício de fé. Cada palavra exige sua própria oração.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Você é fraca

Você tem medo e por isso foge. Foge agora para não ter que fugir de todos os pensamentos que invadirão sua cabeça depois. Foge para não ter que explicar para ninguém o porque do seu afastamento. Foge de mim porque acha que daqui a pouco estará fugindo de você e teme não saber achar o caminho de volta.
Você tem medo e por isso termina. Termina com medo de começar. Termina com medo de se envolver. Tem medo de tropeçar com a linha da vida. Tem medo que a linha da sua vida dê nó em outra e você não consiga mais desatar.
Você tem medo de pensar em mim mais do que em você. Tem medo de ligar, todo o dia, para perguntar obviedades. Tem medo de não conseguir estudar. Tem medo de não conseguir trabalhar. Tem medo de esquecer sua família. Tem medo de só pensar em mim.
Tem medo de perder a independência. Tem medo de perder a solidão. Tem medo de perder quase tudo.
 Luta contra o amor, com medo de se prender. Mais do que isso. Tem medo de não se soltar nunca mais.
___________________________
Medo de interromper o que recém iniciou, de começar o que terminou. Medo de faltar as aulas e mentir como foram. Medo do aniversário sem ele por perto, dos bares e das baladas sem ele por perto, do convívio sem alguém para se mostrar. Medo de enlouquecer sozinha. Não há nada mais triste do que enlouquecer sozinha. Você tem medo de já estar apaixonada. (Depois que escrevi, percebi-me fortemente inspirado pelo meu amigo Fabricio Carpinejar)

sábado, 9 de outubro de 2010

Epílogo da tentação

Ela o viu como em outras épocas. Ele a olhou, como sempre. Mas não era qualquer dia. Eram dois anos depois.
Ele estava o mesmo baú, com tudo que já era seu guardado dentro. Ela era o mesmo livro, mas com outra história. Quase nada era igual. Ele via que alguma coisa que conheceu ainda existia ali, mas era tão pouco e insuficiente que nem sabia dizer o quê. Era livro velho com história nova. Era mudança que veio sem se esperar. Ele, o baú, a via admirado. Ela, o livro velho, com a capa cheirando a nova, só desfilava pela estante. E então ele percebeu que o livro só era velho em sua cabeça. Ela estava nova. Seus cantos redesenhados, as dobras das folhas já nem existiam mais. Era a mesma, só que diferente. Diferentemente interessante.
Ele não hesitou. Pegou o livro e de súbito começou a ler. Quanto mais lia, mais se surpreendia e mais queria. Quem haveria reescrito? Não importa. O que importa é que ele gostava. Estava bom e ele queria mais. E mais. E mais.
Sem parar, com ela nas mãos, leu dos pés a cabeça. Cada linha era um mundo que ele ia descobrindo frase a frase. Cada final lhe convidava pro início.  Epílogo da tentação. 
 Ele nunca mais parou.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Gênesis

No princípio era ela. E todas as coisas dela vieram.
A água que lhe escorria pela face enchia o mundo. A ponta de seus dedos esculpiam os relevos, as rochas e as relvas. Seu sopro fazia crescer tudo que tinha vida. Não havia palavra que não saísse de sua boca.
Na medida que ria, dava brilho ao sol. No oposto, era a lua que se iluminava. Porque tudo nela era claro. Era de luz até sua escuridão.

sábado, 11 de setembro de 2010

Carta para o quase amor

Escrevo esta carta para registrar todos os encontros que nunca tivemos. Escrevo para me lembrar de todas as luas que não pudemos olhar. Meu quase amor, que você não se esqueça de todos os convites que eu não lhe fiz e que não esqueça também as desculpas que nunca precisou dar.
Escrevo pra eternizar as noites que planejamos ficar acordados sem nos importar com quantos dias seriam precisos para compensá-las. Ah! Escrevo por todas as sessões de cinema que não perdemos, por todos os teatros que não fomos e por todos os dramas que não choramos. Escrevo também pelos filmes de terror que você não chegou mais perto. Aliás, escrevo por todas as vezes que você não chegou mais perto, seja por falta minha ou tua.
Não posso esquecer de citar todas as brigas que não pudemos ter tido e todas as voltas que só as essas brigas poderiam proporcionar. Escrevo por todas as mãos que não se entrelaçaram. Escrevo por todas as vezes que os olhares não se perderam dentro das tantas vidas que vivem neles. Quantas vidas cabem no seu olhar? Ainda não descobri, mas escrevo por todas elas também.
Escrevo pelo sol que não pôde iluminar com mais força nossa pele e por todo pássaro que não poderá fazer coral para nossa passagem. Escrevo por todos os caminhos que não poderão sentir os meus passos tão desalinhados ao lado dos teus.
Escrevo a você, que chamo de quase para não afirmar a ausência, sem pudores. Escrevo para deixar gravado tudo que não pudemos viver, por falta minha ou tua, isso já não importa.
Deixo registrado até o que dói em mim. Mas que não seja só. Quando você voltar, já não serei mais o mesmo. Então além de todas essas coisas, escrevo também pelo amor que você não teve. E talvez, nunca terá.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Isso também passa

É tudo sem importância.
­As coisas todas!
Me entristeço
Pensando nisso

­Quase tudo
­Não vale o esforço
­É pequeno demais
Para a vida

­Não vale a raiva
­Nem o rancor
­Não vale a mágoa
­Nem a dor

O que vale disso tudo
E sobra mesmo no final
É o amor que se tem
muito mais que o carnal

sábado, 4 de setembro de 2010

Agora não mais

Um dia fui quem você procurou.
O primeiro da sua lista de contato,
Aquele que te vinha a cabeça antes de qualquer coisa.

Um dia fui quem você sonhou.
O cara que chega de cima do cavalo branco.
Aquele com que cada beijo é sempre o primeiro.

Um dia fui o que você quis.
O seu ator preferido.
A sua canção preferida.
O seu preferidamente melhor.

Um dia fui e hoje sou lembrança,
Sou pergaminho na história da tua vida.
Tudo que eu fui não tem mais importância,
Você nem lembra mais de mim.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Tudo que sai

Tudo que sai de mim te confunde
O que digo é o laço que tropeça tuas pernas
Tudo que sai de mim te confunde
O que faço é o nó preso na tua garganta
Tudo que sai de mim te confunde
Mas tudo que vem de você me esclarece
Como o céu a quem cabe admirar estrelas

Quero te estudar para sempre
Me graduar em você, quem sabe até me pós-doutorar
Entender como funciona
A matemática do seu pensamento
Analisar as variações químicas do seu humor
A geografia do seu corpo
A história da sua vida

Tudo que sai de mim te confunde
Mas é sempre tão claro o que deixas de ti
Que me entrego inteiro a esse problema
só pra ter o prazer de buscar todo dia
o X da sua questão

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Vestida

Acordou como em qualquer outro dia. Tomou banho, fez um suco pro café-da-manhã e comeu uma maçã antes de sair. Não sem antes escovar os dentes e conferir no espelho se a blusa que ela esquecera de passar estava aparecendo tão amarrotada como ela supunha. Trancou a porta. Voltou pra conferir. A essa altura já nem pensava mais nisso, tropeçava as pernas para descer os degraus da portaria e corria para chegar ao ponto de ônibus. Estava atrasada, corria para tentar fazer o relógio andar para trás.
Deu sinal para o primeiro ônibus que passou. Qualquer um ia para onde ela ia. Não importava como, importava chegar. Ia almoçar e já pensava no jantar. Ia pro Natal fazendo contagem regressiva para a virada do ano. Ela era dessas que tira o esmalte antes dele sair sozinho. Antecipava tudo. Adiantava tudo. Primeiro colhia o fruto, depois plantava a semente.
O ônibus estava cheio. O povo sentado fazia cerimônia para o povo de pé. Ninguém abria mão de nada. Seguiam firme, todos, olhando reto. Menos o rapaz da penúltima fileira. Ele não podia endurecer o pescoço. Seu olhar se curvava para ver aquela mulher. Não tinha como não reparar. Ela já era outra. Aquela que chegou inteira já não estava nem metade. Encolhida no banco, ela não parecia bem.
Foi até a última parada para descobrir o ponto final daquela história. Todos desceram e ele a esperou. Ela não levantava. Agora era caso de vida ou morte. Ele levantou e foi até ela. Seus passos não a alcançavam. A mulher de pele quente, de passo forte, que subiu com toda pressa que há nessa vida não estava mais ali. Ele via o que sobrou dela.
Acordou como em qualquer outro dia. Escovou os dentes e botou a roupa amarrotada para não perder tempo. Sua amiga já a esperava para jantar. O rapaz percebeu que, no momento que se aproximou, presenciou o fim. Cada expiração tirava mundo de dentro dela. Cada inspiração enchia ela de ar. Até que a última foi fatal. Ficou cheia e oca ao mesmo tempo. Preenchida de nada.
Colocou a roupa amarrotada e saiu como em um dia qualquer. Mas aquele não era um dia qualquer. Era caso de morte. Hoje, ela se vestiu para morrer.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Tchau

Todos os dias passo embaixo da sua janela. Não grito, não paro, não chamo, não jogo nada. Só passo.
Tomei esse hábito desde que a gente parou de se falar. Passei a falar com as migalhas de pão que você deixa cair pelo caminho. Passei a falar com o papel de chiclete que você comeu e jogou no meio-fio. Não ouço mais a sua voz, mas ouço os pássaros cantando na árvore em frente a sua casa e deixo eles falarem por mim. Já conheço todos por nome. Eles também me reconhecem. Aposto que comentam entre si que eu estou chegando.
Por quê você não chega na janela? Por quê você não resolve olhar na hora em que eu passo? Talvez você nem saiba que eu faço isso. Talvez você nem repare nas coisas que eu deixo pra você. Outro dia deixei uma história encostada naquele banco que a gente costumava sentar. Já deixei também aquela flor que você adorava pegar quando passávamos pela rua de trás.
Todos os dias passo embaixo da sua janela. Meu GPS tem rota única, qualquer caminho sempre me leva à você. Agora deixa eu ir embora. Eu sei que você vai estar me esperando. Só você é quem não sabe. Amanhã eu volto. Tchau.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Amor é sempre permissão

Estou habilitado para dirigir. Não tirei carteira, tirei porte de arma. Dirigir é um perigo. O que define se estou pronto ou não para pegar o carro é um papel. Não importa minha habilidade, não importa se eu acelero feito um maluco ou se rastejo feito verme. Nada disso importa. Só o papel, que começa como permissão.
O tempo me dá habilidade. O tempo garante minha perícia. Não importa se nunca mais dirigi, ou se todos os dias eu dobro a esquina da Marquês de Olinda. O peso é o mesmo. Passado um ano, viro definitivo. Definitivamente capaz.
Mas no amor não é assim. Amor é sempre carta provisória. Pode passar o tempo que for, ninguém se torna definitivo no amor. O primeiro beijo garante a habilitação. O primeiro beijo joga a gente no trânsito. Começamos devagar, sem ultrapassar, sem ameaçar, sem se atrever. O começo faz a gente ligar a seta pro lado errado, não admitir parar sem pisca-alerta e deixar o carro morrer. Não sabemos acelerar direito, não ouvimos o barulho do motor, apertamos o freio sem nem olhar para a embreagem... enfim, erramos.
O amor é uma auto-escola que só admite aulas práticas. O primeiro beijo nos matriculou, mas nem a unção dos enfermos nos gradua. É por isso que não ficamos definitivo.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Sobre comidas

Experimento porque gosto. Assim mesmo. Gosto antes mesmo de experimentar. Admiro quem se despe de qualquer pré-conceito e experimenta as coisas, quase como se desconhecesse sua origem. Acho curioso esse comportamento animalesco de ver a todos os seres – incluindo a nós – como potenciais presas.
Posso estar sendo um tanto antiquado, mas não gosto de comidas exóticas. Não como lula. Não como polvo. Não como testículo. Não como pato, ganso, carneiro e búfalo. Não como rã. Nem dizendo que tem gosto de frango. Não como cavalo-marinho. Aliás, não como nenhuma criatura que venha do mar.
Antes que me apontem o dedo, como carne bovina. Frango, vez ou outra. Mas não vou muito longe disso. Odeio jiló, mas nunca comi. E nem precisei experimentar para odiar.
Primeiro eu gosto, depois experimento. Não como para matar a fome. Como para assassinar vontades.

domingo, 4 de julho de 2010

Sua sombra

Acordei com inveja de tudo que vive em volta de você. Desse ar que você respira, incansavelmente, sem reclamar. Da destreza com que pega o garfo para comer e rompe a pureza da comida no prato. Daquele sapato que espera o dia todo para ser calçado por você e que deixa os outros todos sapatos morrendo de ciúme.
Acordei com inveja do travesseiro que coloca entre as pernas e do lençol que toda noite cobre o teu corpo. Da cadeira que você senta, da sua blusa preferida, do lápis que usa para escrever. Acordei invejando o telefone que cola no seu rosto e faz você sorrir. Como eu queria fazer você sorrir assim.
Hoje eu acordei com inveja daquela carta de amor que você guarda na caixa no fundo da gaveta e que sempre pega para lembrar. Acordei com inveja de todos os seus amores. E do brinco que você pendura na orelha como um troféu. E do colar que enfeita seu pescoço o dia todo. E do vento que faz carinho na sua pele.
Hoje eu acordei com uma vontade de não te dividir com ninguém. Por isso, estou invejando até sua sombra.

Por Enquanto

Todos os dias o caminho era o mesmo. Não mudava de rua, não mudava de lado na calçada, não atravessava em outro sinal. Virava sempre na mesma esquina. Passo na frente de passo, passava por ele mesmo todos os dias. E assim seguia.
Vivia qualquer coisa mais-ou-menos. Conhecia a metade da alegria, sentia a metade do afeto. Toda luz era meio escura. Até que um dia, ele mudou.
Notou que tinha uma placa diferente no caminho. Reparou que o bar tinha virado uma loja de suco e que a quitanda do Zé já não tinha o mesmo dono. Reparou que os meninos que faziam acrobacias para ganhar uns trocados nem lá mais frequentavam. Viu o céu mais azul, o sol mais amarelo e o verde invadia-lhe a vista como um ladrão que invade casas. A beleza das coisas invadia-lhe a vida. Onde ele andou esse tempo todo? Todo dia passava por ali, como pode não ter notado que o muro agora era azul? E porque agora ele reparava em tudo isso?
Alguma coisa acontecia, mas ele não sabia explicar.
Mas não precisa ser nenhum sábio
pra dizer o que se está passando.
É claro que esse homem,
só podia estar amando.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Ciúme vira-lata

Meu cachorro não tolera que toquem o interfone. Basta um mínimo som e ela já começa a latir, desesperadamente. Não se incomoda com quase nada, mas o barulho do interfone é uma afronta a sua integridade. Mas eu entendo porque. Interfone é a ameaça presente, é a certeza da invasão. Meu cachorro entendeu que quando ouve aquele barulho, significa que alguém vai invadir seu território, mexer nos seus ossinhos e quem sabe, leva-lo embora. Veio da rua e teme o retorno, mesmo que já tenham se passado tantos anos. Meu cachorro tem ciúme de mim.
E assim somos nós, exatamente como meu cachorro. Somos vira-latas no amor. Mesmo com a segurança do lar, tememos voltar para as ruas. Mesmo tendo ração no pote e carinho na barriga, temos a impressão de que a qualquer momento alguém vai tocar o interfone do coração dela e invadir o território que era só seu.
Assim faz o ciumento, antecipa o toque. Acha que qualquer barulho é o do interfone e entra em desespero. Controla as chamadas, as mensagens, os emails, a vida. Desejo no outro um fantoche das suas vontades.
As vezes o toque do interfone é inevitável. As vezes, alguém tem mesmo que invadir o seu território e te tirar de lá, com os ossinhos e tudo.
O ciumento é como meu cachorro. Nem todo latido é preciso. Mas é preciso latir. Late porque gosta. Late porque tem ciúme. Late porque não me quer longe.
O ciumento quase nunca late sem sentido. Todo latido tem um fundo de verdade.

sábado, 12 de junho de 2010

Não quero parecer maluco

O que eu faço com essa coisa aqui dentro? Já que você não quer dividir comigo, então me diga: Em que lata eu coloco esse lixo para ser reciclado? Porque uma coisa bonita dessas não pode ser jogada fora. Uma vontade boa dessas não pode ser posta numa esquina, como uma tábua de madeira sem uso.
Estranho como essas coisas acontecem. Um dia, somos invadidos por alguma coisa que domina a gente, mesmo sem a gente querer. Eu não queria. Eu tentei resistir bastante, aliás. Mas não dá! Como resistir ao seu cabelo seguindo o vento e revelando a sua nuca? Como ficar imparcial ao jeito que você olha quando gosta de alguma coisa? E quando você toca a orelha? Adoro quando você toca a orelha. Eu não sei bem explicar. Te fito de longe. Não quero parecer maluco. Como explicar o que é você atravessando a rua? O sinal fecha até no verde. Carro nenhum se atreve de passar. Até os pedestres param. Teu cheiro doce não enjoa. Tua pele branca não cega. Tua boca vermelha não me sangra, me convida a vampirizar teu sangue, gota a gota.
Me esforcei para ficar indiferente. Eu juro que tentei. Mas não deu. E agora, você me diz que não pode ser. Me diz que eu não sou quem você procura. Ou que não atendo aos seus requisitos. Então tá. Você não pode ser mais forte que a minha vontade. Tome meu amor e me deixe ir embora. Mesmo que eu queira ficar. Mesmo que eu deixe a porta encostada e demore a apertar o botão do elevador, esperando que você mude de idéia. Mesmo quando a minha vontade é você. E só. Você.

Carta para Carpinejar

Pensei muito sobre te mandar ou não esse email.
Primeiro, porque julguei – de certa forma - desnecessário, já que você, enquanto escritor publicado, já teria ouvido diversas opiniões, sejam contrárias ou favoráveis, trocentas vezes mais conceituada que a minha. E segundo, não sou de fazer tietagem, principalmente virtual. Mas cá estou...
Não teria outro assunto para colocar no corpo do email do que 'Obrigado'. Obrigado! E isso me basta. Isso é tudo que eu queria dizer. Aliás, pra mim, esse obrigado tem mais de dez mil caracteres. Mas como você não é vidente, deixa eu explicar: Comprei um livro-porcaria ( assim mesmo, com hífen! ) e necessitei ir até a livraria me livrar daquilo. Estava disposto a tudo: vender, doar, queimar... mas graças a Deus sugeriram a troca. Quando a mulher me perguntou: “- E que livro o senhor gostaria?” me deu um branco total. Minha lista de livros ( pra comprar ) é sempre gigante, mas eu não lembrei de nenhum. Olhei para o lado na tentativa de permanecer seguro e me deparo com uma capa um tanto estranha: uma moça, uma neblina e um título que me gritava na cara “Canalha!”. “- Quero esse.!”
Lembrei que já tinha ouvido falar de você. Minha memória, que sempre esquece de lembrar, matou a charada: era um escritor que a Ana Carolina já tinha falado uma vez. Um cara aí.
Meio desconfiado, ia ler a primeira crônica. Lembrava que o prazo de troca da livraria já havia acabado, ou seja, era esse e acabou. “Canalha!”.
Li a primeira, fui pra segunda, emendei na terceira... quando dei por mim estava na página 32. Trinta e dois! Trinta e duas páginas haviam se passado por mim, como se eu tivesse tirado uma soneca depois do despertador tocar. Como poderia? Como eu não tinha sentido?
Tentei resistir. Deixei o livro de lado. Mas foi inútil. Acabei o livro como ejaculação precoce, muito antes da expectativa. Virei propagandista de Carpinejar. Desde Fevereiro faço campanha. Sou um mercenário das letras. Um mecenas da modernidade, que vende sua imagem em troca de textos.
Não sei se você vai chegar a ler, porque estou mandando para o primeiro email que eu vi. Mas eu precisava tossir isso tudo, que estava entalado a alguns meses.

Obrigado!
Yke Leon

terça-feira, 20 de abril de 2010

Lembranças-câncer

  Certa vez ouvi um médico falando que “o câncer é uma célula que esqueceu de morrer”. Essa explicação me fez lembrar que na vida, tudo tem seu prazo de validade. As vezes evitamos o começo, que até pode não acontecer, mas o fim é inevitável. Sábio o poeta que disse que o eterno só existe enquanto durar. Ele viu o que fingimos não ver.
  As lembranças são como as células. As piores lembranças são aquelas que esquecem de morrer. Anulam o fim, tapam os olhos e se acreditam no presente. Foi passado. É passado. Mas elas ignoram e fingem não ver. Pretensiosas, agem como se existissem. Vez ou outra confio numa dessas lembranças-câncer e faço tudo errado.
  Preciso de tratamento. Vou ligar para o plano de saúde e ver o que eles cobrem. Será que eles tem quimioterapia na memória? É disso que eu preciso.

sábado, 17 de abril de 2010

Amor financeiro

 Todo amor, no início, é como a bolsa de valores. Não importa quanto se ganha ou quando se perde, tudo estava no risco do investimento. Arriscamos muito, arriscamos tudo, que temos e não temos, pra fazer dar certo. No início todo investimento vale a pena. O prazer é a incerteza da próxima noite. Cancelamos compromissos, inventamos coisas e criamos situações. Arriscamos.
 Mas com a segurança e o tempo, a panela de pressão vira chaleira. Como a criança que abandona a chupeta, vamos ficando cheios daquele amor. Ora, pra que investir, se sabemos que já está lá?
Abandonamos as roupas novas, as histórias novas e viramos acomodados do amor. Do mesmo amor que fazia a gente arriscar. Se antes o amor era investimento na bolsa de valores, agora ele é conta-poupança. E a gente, vai sobrevivendo dos rendimentos desse amor.

quarta-feira, 31 de março de 2010

Cinco dedos e duas mãos

  Nunca fui da turma dos que queriam pouco. Meu problema sempre foi querer demais. Querer mais do que cinco dedos são capazes de pegar, mais do que as duas mãos juntas conseguem agarrar. Nunca desejei menos, nunca quis pouco. Sempre padeci de excessos.
  Até na dúvida, escolho no exagero. Quase não me lembro de alguma vez em que não tive escolha. É melhor ter que escolher entre alguma coisa, do que não ter o que escolher. Isso sim é pior. Escolher entre o nada e o coisa alguma me soa angustiante. Sempre padeci de excessos. Sou um inveterado da quantidade.

terça-feira, 23 de março de 2010

Jogo da vida

 As vezes eu acho que a vida joga no meu time. Que toca pra mim, me convoca a fazer tabela, cabeceia meu escanteio e empurra a bola para nada atrapalhar minha falta. E quando isso acontece, o time todo fica em sintonia. Mas de repente, não sei bem dizer quando, a vida parece que toma um cartão vermelho e ao invés de só ficar de fora, resolve jogar no outro time. Arma contra mim. Cria jogadas ensaiadas. Domina a situação de tal maneira que me faz até fazer gol contra.
 E é nesse girar da moeda, quando a cara vira coroa e a vida muda de time, que ela parece jogar melhor.

terça-feira, 9 de março de 2010

Gente vazia


 Não tenho paciência pra gente vazia. Não que eu me ache excepcionalmente cheio, mas com gente vazia, fujo de me misturar. Quando encontro um desses sujeitos vazios, seja de sentimento, de compaixão, de afeto, de respeito, trato logo de me afastar. Pior é quando encontro quem é vazio de tudo, esses acabam se perdendo na própria vastidão.
 Não que sejamos limitados e à medida que a coisa avança, ficamos cheios e temos que nos esvaziar. A possibilidade humana é infinita! Não entendo como num mundo com tanta coisa a espreita, vamos nos pautar logo em exemplo vazios. Vazios de exemplicidade.
 Engraçado que gente vazia se acha cheia: de razão, de atitude, de coragem. Chatice! Eu achava que gente vazia podia se conhecer. Todos eles. Conhecem-se, misturam-se e com o oco dos seus corpos, preenchem-se. É quase como uma ajuda. Um vazio é só um vazio, mas um monte de vazio até dá um cheio. Não garanto qualidade, não garanto que será um cheio de se admirar... mas e daí? Ainda que não seja só um vazio, está valendo. Eu acho

Licença de parar

Passa vida,
Passa a farra
Passa a agitação

Passam as moscas
Passam as flores
Passam na estação
Passa num ano

Passa o seu vizinho
Passa o seu João
Passa o manequinho
Passa o vendedor de pão

Passa rápido
Passa voando
Todo mundo passa andando

Dou licença então,
já que todo mundo tá passando
E peço licença também,
as vezes quero ir parando

Poema feio

Começo querendo escrever um poema
Me deixo levar pelas linhas, rimas,
pelo som das liras...
Mas aí nada rima
Nada flui naturalmente
Fica tudo engessado,
duro,
oco!
Queria escrever um poema
Desses bonitos, como os que eu gosto
Versos Quintanos, Carpinejanos,
mas não dá!
Não sou desses.
Nasci pra versos feios
Sem rima
Amontoado de palavras

Mas não vou reclamar
Se assim for
Se meu divinatório dom for o de poemas afeados
Quem há de se importar?
Se os poemas são como filhos
Talvez eu tenha essa vocação
Talvez, tenha nascido só pra ser isso
Pai de poemas feios

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Botão

 Corria pela rua como se nada mais importasse. Os rostos passavam tão rapidamente que já era impossível reconhecer alguém. Rua cheia, esbarrava nas pessoas, tropeçava nas próprias pernas. Pisou na poça, molhou o sapato, sujou a calça, mas isso já não importava. Correu muito, não se sabe por quanto tempo, nem por que. Tudo que se sabe é que deu a noite e ele parou. Assim, sem explicação. A lua reinou e ele parou. Sentou. E começou a chorar. Estava numa rua escura, ora por ser noite, ora pela luz estar fraca. Não passava uma só pessoa para perguntar quem era aquele homem e por que correra tanto para ficar ali, estático, chorando, no chão.
 Enquanto chorava, o homem ia desabotoando a camisa e à medida que tirava, cada botão, era como se tirasse um pouco de sua vida. Um botão era a infância castigada. Outro a juventude transviada. E por último, era a vida miserável que levava agora. Despia-se da roupa e de tudo que fazia-lhe mal. Até que tirou os sapatos, a meia e por fim, ficou nú. Deitou-se no asfalto frio e a desgraça tirava-lhe o pudor. Adormeceu. Enquanto dormia, a morte beijou-lhe a face e seu coração de tanto bater acelerado, parou. "Que alívio!" pensou ele.  ­Depois de morto conheceu a vida. Agora, ele era mais feliz.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Não tinha

Não tinha emoção,
Não tinha graça.
Até gostava,
não vou negar.
Não era paixão,
Nem era amor.
Era tudo,
que eu não consigo explicar.
 

A gente nunca sabe quando está vivendo um momento inesquecível.

 Tem uma série de coisas que eu trago comigo e que pra mim, são inesquecíveis. Não falo das conquistas sociais que se espera que todo ser humano tenha, como atingir a maioridade, acabar o colégio e nem nada desse tipo. Eu falo de algo muito maior e muito mais intenso do que isso, algo que surge, espontaneamente, dentro de si, com força tamanha pra não ser capaz de se alterar por nada.
 Um abraço, um entardecer, um cheiro, um olhar. Aquela risada que você deu com os amigos ou aquela vez que você chorou copiosamente e alguém, mesmo sem entender, te apoiou. Aquela conversa que surgiu despretensiosamente num dia de semana e que significou tanto pra você. Ou mesmo aquele dia em que palavra alguma foi dita, mas que nada, seria melhor que o silêncio. Pessoas, palavras e sentimentos.
 Existem momentos que eu jamais vou esquecer. Não são momentos extraordinariamente bem elaborados, mas são momentos que na simplicidade de serem, espontaneamente se tornaram especiais. Se me perguntassem hoje, o que eu sou, talvez diria apenas isso: o resultado e consequência de infindáveis e inesquecíveis momentos.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Diálogo do dia

- Você é totalmente cego?
- Pra não dizer que não enxergo nada, eu só vejo a luz.
- Ora! Você vê a luz, já conhece o sentido da vida. Eu tento ver a luz e não consigo!
- Vou te dizer uma coisa: É mais fácil ver a luz de olho fechado.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Carne viva

Te sinto
em carne viva
viva!
te sinto o sangue
quente
a correr rápido nas veias.
a respiração acelerada,
o coração batendo forte,
a veia pulsando firme,
e o peito, a subir e descer
Sempre, intensamente, assim.
Sim, apesar de tudo,
és tão viva...
( adaptado de "Eu estou aqui", Diálogos a Sós )

domingo, 31 de janeiro de 2010

Tudo que eu quero

Tem horas que sou grande
E aí tudo que toco é um pouco eu.
Porque de tão grande que estou,
vou me dividindo em todas as pequenas coisas que encosto.

Tem horas que sou pequeno
E aí tudo meu é miudo.
Porque de tão pequeno que estou,
mal quase apareço.

Mas tem horas que não sou nada.
Nem grande, nem pequeno,
Sou assim, coisa alguma.
E nessas horas é que costumo ser tudo que eu quero.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Temor Nietzschiano

 Tenho lido muito Nietzsche ( mais sobre ele do que ele, na verdade ) e ler a sua biografia me fez ficar com um certo temor: "Tenho medo de viver como Nietzsche, isolado, solitário, e passar o fim da vida, louco, aos cuidados da minha família."

domingo, 17 de janeiro de 2010

Isabel

Conheci uma menina tão graciosa
que se eu contar parece mentira
Oh! Isabel!
quando andava, caia um pouco de charme das cadeiras
quando falava, saia um pouco de poesia da boca
Mas quando me fitava,
ah! Quando me fitava com os olhos, me vinha um convite
de chegar pertinho
sentar juntinho
fazer chamego
Não sei quantos mais amoleceram na sua presença
Só sei que eu, fitado nesse olhar de Medusa
Estou aqui, parado, estático, esperando você voltar

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Grrrrrr


É o peito batendo forte, pulsando firme, quase saindo pela boca. É o sangue subindo quente e descendo ainda mais veloz. É a boca comprimida, é o olhar apertado, é a mão fechada. É o suor escorrendo, o calor transbordando pelos poros, invadindo tudo ao redor. É a raiva que chegou violentamente me tirando a razão.


sábado, 9 de janeiro de 2010

Dedos engasgados

 Quando estava escrevendo, meus dedos engasgaram. Engasgou de tal jeito, que todas as palavras saíram gaguejadas. Nada agora presta, tudo virou um apanhado de sílabas repetidas.


sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Frase do dia

Eu passo tanto tempo na auto-escola, que assisto a mesma aula várias vezes e acho que é novidade.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Urbano e rural

 Tem dias que acordo urbano e só o que quero ver é cimento. Me conforto com prédio, me alegro com carro, me ponho erguido com a fumaça que sai dos motores e com o falatório do semáforo fechado na hora do almoço.
Mas tem dia que acordo rural. E aí, preciso de verde, de vegetação, de vida que nasce da terra e vive da chuva e do sol.
Quando acordo urbano, a natureza me oprime e me sinto metade. Quando acordo rural, é a cidade quem me amedronta e é a outra metade que aparece. Mas só de acordar vivo, já me sinto feliz. E completo.

sábado, 2 de janeiro de 2010

Boris Casoy e o caso dos garis

 Estava ontem vendo um jornal na Tv Bandeirantes – vulga Band – quando de repente surge o rosto do Boris Casoy, focalizado, pedindo desculpas pelo que disse no dia anterior, o áudio estava aberto e ele acabou falando coisas que não devia, ofendendo a todos os garis.
Como não havia visto jornal no dia anterior, fui procurar o vídeo no Youtube e constatei que o caso é ainda mais grave. O último Jornal da Band de 2009 acaba com dois garis desejando felicitações para o ano que se inicia, saúde, sucesso, dinheiro... enfim, o que todos desejam. Eis que se ouve ao fundo Boris Casoy dizer: “Que merda! Dois lixeiros, no alto de suas vassouras... Dois lixeiros, o mais baixo na escala do trabalho!” ( clique aqui para assistir )
E enquanto via, me questionava como um sujeito como ele, sendo um dos jornalistas mais considerados do país, consegue ter uma opinião tão mesquinha, tão nojenta, tão ridícula como essa. Como pode ele, que vive colocando o dedo na cara e dizendo: “Isso é uma vergonha!” ser capaz de pensar assim? E ao mesmo tempo me pergunto o que será que há na biografia de Boris Casoy para ele se considerar tão especialmente melhor e mais capacitado na escala do trabalho?
Na Inglaterra, um Dj foi demitido simplesmente por dizer que o discurso da Rainha Elizabeth II era 'chato'. Somente por isso. E aqui no Brasil, uma ofensa deste tipo, será relevada com um simples pedido de desculpa?
Uma vez tive um professor que disse: “Credibilidade é algo que se demora anos pra construir, mas em um minuto pode acabar.” No caso deste senhor, foi preciso até menos que um minuto, bastaram 15 segundos. Agora, Boris Casoy faz jus ao seu bordão: Ele é uma vergonha.


Mudança


   Esse clima de mudança de ano faz a gente lembrar o passado e planejar, ainda que só em teoria, o futuro. E nessa de lembrar o que passou, andei lendo umas coisas antigas aqui do blog, ou outras que aqui não estão, mas guardo como acervo, e confesso que fiquei surpreendido. Antes eu era do concreto, do real, do que fazia sentido. Da crônica, da crítica, do protesto social. E agora, tudo que escrevo é mais lúdico, mais poético, mais abstrato. Eu, que sempre fui do reclamar abertamente, me vi falando tudo nas entrelinhas. Ainda não sei como isso foi acontecer, nem qual momento exato do acontecido, e muito menos se isso é bom ou ruim. Ou eu me achei, ou eu me perdi. Ou nada disso, talvez eu só tenha mudado.