domingo, 4 de março de 2012

A última carta

Estimada Roberta,

Estranho pensar que lhe escrevo esta última carta. Aliás, estranho pensar que ainda lhe escrevo alguma coisa, já que a razão e o bom-senso me dizem desesperadamente para não lhe deixar nem receita de bolo, nem bilhete debaixo da porta, nem papel amarelo colado na geladeira escrito: “Fui ali e já volto!”. Eu sei disso tudo. Mas acontece que tem uma, duas ou talvez trinta e tantas coisas que ficarão sem ser ditas se eu, simplesmente, parar de lhe falar ou de lhe escrever essa carta. Então é preciso que ela exista, mesmo que ela não mereça existir. Ou melhor, mesmo que você não a mereça, nem por um parágrafo, nem por uma linha sequer, ela existirá para falar o que não pude ter lhe dito.
Antes de começar qualquer parte, devo reconhecer que fui um bobo nessa história. Fui um bobo porque pequei pela esperança, mas ingenuidade não é álibi para coisa nenhuma, então o que me vale é vestir a carapuça, apertar o cinto e seguir viagem. Mas me diz, com toda sinceridade: desde o início, desde o comecinho, da hora, de quando a gente reapareceu um para o outro... foi sempre vingança, né? Ou algo perto disso. Eu não estou aí para ouvir a sua resposta, mas pode falar. Olha para a janela, para a lua, para onde você quiser, mas fala. Foi desde sempre só uma vontade de brincar, manipular e querer estar por cima, não é? Isso que chamam de autoestima por aí. Todo esse jogo que você criou, camuflado de “história complicada”, te fazia bem. E eu fui um bobo por não ter percebido isso.
Eu fui acreditando nessa tua conversa furada, nesse teu medo desenfreado que te deixava imóvel, mas que não te limitava a falar todas aquelas coisas que você bem sabe quais são. Essas coisas todas que me fazia chegar perto só para depois sumir e ter o gosto de ser procurada. E vivíamos o abismo, onde lá, eu ia te amando quietinho, sem mandar cartas, sem discar o seu número, sem passar em frente a sua casa. Afinal, de que adianta gritar para meio mundo ouvir o quanto nós tínhamos que ficar juntos se você não era –e é- capaz de mover um dedo para que isso fosse possível? De que adianta cobrar resposta e reclamar dos teus afetos com os outros ‘carinhas’, se você não dava um único passo na minha direção para que eles vissem para onde o seu destino aponta? Eu nunca entendi o seu esforço -sempre muito intenso- de me fazer crer e ter toda a certeza do mundo de que eu sou o cara da sua vida, se eu sequer podia fazer parte dela.
Não é minha intenção fazer discurso demagogo e muito menos uma espécie de revolta dos derrotados. Acontece que você foi me dando todos os sinais do mundo de que era só um jogo doentio e vil, e eu fui me negando a enxergar todas as evidências. Acontece que você era capaz de me falar aquelas coisas todas e dizer que sentia medo e pane, mas era capaz de ir para outro país, com a consciência de pluma, para encontrar um outro sujeito. Acontece que você foi capaz de me falar isso, já se despedindo pelo canto da boca, enquanto eu estava há uma ou duas quadras da sua casa, querendo te encontrar em qualquer final de tarde ou de noite, todo esse tempo. Você não era obrigada a me encontrar, claro que não. Mas você dizia que queria, mesmo, muito – e isso é o mais cruel, vil e cínico dessa história toda. Ou eu que fui um enorme tolo e bobo. Aliás, se for esse o caso, você deve estar se divertindo por agora. Talvez seja isso que eu tenha sido mesmo, um entretenimento pseudo-tolo-afetivo.
E então eu fui sofrendo, aos pouquinhos, mas sempre com um tanto de esperança, afinal, mal conseguia ver os sinais tão claros, por causa das tantas estrelas que você me colocou na ponta dos dedos. Mas a vida vai seguindo, as roupas vão desfiando, os sapatos alargando e chega uma hora que o coração não aguenta mais. O meu, por exemplo, terminou de quebrar todo de você quando passei, por esses tempos, passei pela frente da tua casa e lá estava tu e um carinha sentados no nosso banco. Percebeu esse meu jeito bobo de falar? Eu falei ‘nosso banco’ quando, na verdade, ele só devia ser ‘nosso’ para mim e eu nunca percebi. Lá estava tu e um tal sujeito qualquer, do mesmo jeito que ficávamos. Você contava uma história, ele cruzava as pernas, você punha a bolsa no colo e gargalhava enquanto mexia as mãos – lhe parece familiar? Tive vontade de gritar. Avisar para ele qualquer coisa como “toma cuidado” ou só um modesto “fica esperto”, já que cuidado e esperteza me faltaram durante esse tempo e, se ele estivesse entrando agora na história, seria bom já ir prevenido – se bem que, me acredito, poucos teriam persistência e a dedicação que eu tive. Se é mérito ou demérito, ninguém há de saber.
Não tenho nenhuma grande pretensão em relação a esta última carta, e muito menos, a esperança –e vontade- de que ela consiga despertar qualquer coisa especial em ti. Já ficou mais do que claro para mim, aliás, que a única coisa que parece despertar qualquer coisa especial em ti são os textos que você mesmo escreve. Mas não estou de total certo; talvez possa estar confundindo o eu-lírico com a Roberta fria e humana por conveniência que eu conheço.
Escrevo esta última carta, então, para deixar também um pouco do feio e do sujo de você que estava morando em mim. Não é justo lhe deixar ir embora só com as coisas bonitas, já que aqui, dentro de dentro de mim, é tudo muito mais cinza e nublado do que um dia irá conhecer.

Bem, obrigado.
Não sei de você teve a paciência e a delicadeza de chegar até essa parte da carta – aliás, se está lendo essa frase agora, já é sinal de que está progredindo e, arrisco dizer, que teve mais delicadeza com ela nesses poucos minutos do que teve comigo durante todo esse tempo.
Por isso o meu obrigado.

                                                    Boa sorte na vida, até qualquer dia,
                                                                                                 Leo.



Ps: Peço que perdoe esta última carta por ter sido digitada, ao contrário de todas as outras discursivas. Acontece que a vida anda por demais corrida e eu não teria tempo e disposição para lhe cometer o esforço de transcrever todas as páginas. Talvez você nem leia. Ou quem sabe, talvez nem mereça mesmo.
The Girl with a Pearl Earring - Johannes Vermeer (1665)