sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Tudo que sai

Tudo que sai de mim te confunde
O que digo é o laço que tropeça tuas pernas
Tudo que sai de mim te confunde
O que faço é o nó preso na tua garganta
Tudo que sai de mim te confunde
Mas tudo que vem de você me esclarece
Como o céu a quem cabe admirar estrelas

Quero te estudar para sempre
Me graduar em você, quem sabe até me pós-doutorar
Entender como funciona
A matemática do seu pensamento
Analisar as variações químicas do seu humor
A geografia do seu corpo
A história da sua vida

Tudo que sai de mim te confunde
Mas é sempre tão claro o que deixas de ti
Que me entrego inteiro a esse problema
só pra ter o prazer de buscar todo dia
o X da sua questão

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Vestida

Acordou como em qualquer outro dia. Tomou banho, fez um suco pro café-da-manhã e comeu uma maçã antes de sair. Não sem antes escovar os dentes e conferir no espelho se a blusa que ela esquecera de passar estava aparecendo tão amarrotada como ela supunha. Trancou a porta. Voltou pra conferir. A essa altura já nem pensava mais nisso, tropeçava as pernas para descer os degraus da portaria e corria para chegar ao ponto de ônibus. Estava atrasada, corria para tentar fazer o relógio andar para trás.
Deu sinal para o primeiro ônibus que passou. Qualquer um ia para onde ela ia. Não importava como, importava chegar. Ia almoçar e já pensava no jantar. Ia pro Natal fazendo contagem regressiva para a virada do ano. Ela era dessas que tira o esmalte antes dele sair sozinho. Antecipava tudo. Adiantava tudo. Primeiro colhia o fruto, depois plantava a semente.
O ônibus estava cheio. O povo sentado fazia cerimônia para o povo de pé. Ninguém abria mão de nada. Seguiam firme, todos, olhando reto. Menos o rapaz da penúltima fileira. Ele não podia endurecer o pescoço. Seu olhar se curvava para ver aquela mulher. Não tinha como não reparar. Ela já era outra. Aquela que chegou inteira já não estava nem metade. Encolhida no banco, ela não parecia bem.
Foi até a última parada para descobrir o ponto final daquela história. Todos desceram e ele a esperou. Ela não levantava. Agora era caso de vida ou morte. Ele levantou e foi até ela. Seus passos não a alcançavam. A mulher de pele quente, de passo forte, que subiu com toda pressa que há nessa vida não estava mais ali. Ele via o que sobrou dela.
Acordou como em qualquer outro dia. Escovou os dentes e botou a roupa amarrotada para não perder tempo. Sua amiga já a esperava para jantar. O rapaz percebeu que, no momento que se aproximou, presenciou o fim. Cada expiração tirava mundo de dentro dela. Cada inspiração enchia ela de ar. Até que a última foi fatal. Ficou cheia e oca ao mesmo tempo. Preenchida de nada.
Colocou a roupa amarrotada e saiu como em um dia qualquer. Mas aquele não era um dia qualquer. Era caso de morte. Hoje, ela se vestiu para morrer.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Tchau

Todos os dias passo embaixo da sua janela. Não grito, não paro, não chamo, não jogo nada. Só passo.
Tomei esse hábito desde que a gente parou de se falar. Passei a falar com as migalhas de pão que você deixa cair pelo caminho. Passei a falar com o papel de chiclete que você comeu e jogou no meio-fio. Não ouço mais a sua voz, mas ouço os pássaros cantando na árvore em frente a sua casa e deixo eles falarem por mim. Já conheço todos por nome. Eles também me reconhecem. Aposto que comentam entre si que eu estou chegando.
Por quê você não chega na janela? Por quê você não resolve olhar na hora em que eu passo? Talvez você nem saiba que eu faço isso. Talvez você nem repare nas coisas que eu deixo pra você. Outro dia deixei uma história encostada naquele banco que a gente costumava sentar. Já deixei também aquela flor que você adorava pegar quando passávamos pela rua de trás.
Todos os dias passo embaixo da sua janela. Meu GPS tem rota única, qualquer caminho sempre me leva à você. Agora deixa eu ir embora. Eu sei que você vai estar me esperando. Só você é quem não sabe. Amanhã eu volto. Tchau.