sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Vestida

Acordou como em qualquer outro dia. Tomou banho, fez um suco pro café-da-manhã e comeu uma maçã antes de sair. Não sem antes escovar os dentes e conferir no espelho se a blusa que ela esquecera de passar estava aparecendo tão amarrotada como ela supunha. Trancou a porta. Voltou pra conferir. A essa altura já nem pensava mais nisso, tropeçava as pernas para descer os degraus da portaria e corria para chegar ao ponto de ônibus. Estava atrasada, corria para tentar fazer o relógio andar para trás.
Deu sinal para o primeiro ônibus que passou. Qualquer um ia para onde ela ia. Não importava como, importava chegar. Ia almoçar e já pensava no jantar. Ia pro Natal fazendo contagem regressiva para a virada do ano. Ela era dessas que tira o esmalte antes dele sair sozinho. Antecipava tudo. Adiantava tudo. Primeiro colhia o fruto, depois plantava a semente.
O ônibus estava cheio. O povo sentado fazia cerimônia para o povo de pé. Ninguém abria mão de nada. Seguiam firme, todos, olhando reto. Menos o rapaz da penúltima fileira. Ele não podia endurecer o pescoço. Seu olhar se curvava para ver aquela mulher. Não tinha como não reparar. Ela já era outra. Aquela que chegou inteira já não estava nem metade. Encolhida no banco, ela não parecia bem.
Foi até a última parada para descobrir o ponto final daquela história. Todos desceram e ele a esperou. Ela não levantava. Agora era caso de vida ou morte. Ele levantou e foi até ela. Seus passos não a alcançavam. A mulher de pele quente, de passo forte, que subiu com toda pressa que há nessa vida não estava mais ali. Ele via o que sobrou dela.
Acordou como em qualquer outro dia. Escovou os dentes e botou a roupa amarrotada para não perder tempo. Sua amiga já a esperava para jantar. O rapaz percebeu que, no momento que se aproximou, presenciou o fim. Cada expiração tirava mundo de dentro dela. Cada inspiração enchia ela de ar. Até que a última foi fatal. Ficou cheia e oca ao mesmo tempo. Preenchida de nada.
Colocou a roupa amarrotada e saiu como em um dia qualquer. Mas aquele não era um dia qualquer. Era caso de morte. Hoje, ela se vestiu para morrer.

2 comentários:

Lorena de Assis disse...

A poesia que transborda em um texto assim, estruturado em conto, é mais bonita que a organizada em estrofes, na minha opinião.

Gabriela disse...

Gostei da sua ''mudança de sentimentos''. Esse texto não ficou parecido com os outros, não falei apenas de um amor inalcansável. Me identifiquei na parte onde você fala que a ''Ela era dessa que tira o esmalte antes dele sair sozinho (...)'' Eu sou totalmente uma pessoa que adianta tudo, sou muito ansiosa com tudo !