sexta-feira, 23 de julho de 2010

Amor é sempre permissão

Estou habilitado para dirigir. Não tirei carteira, tirei porte de arma. Dirigir é um perigo. O que define se estou pronto ou não para pegar o carro é um papel. Não importa minha habilidade, não importa se eu acelero feito um maluco ou se rastejo feito verme. Nada disso importa. Só o papel, que começa como permissão.
O tempo me dá habilidade. O tempo garante minha perícia. Não importa se nunca mais dirigi, ou se todos os dias eu dobro a esquina da Marquês de Olinda. O peso é o mesmo. Passado um ano, viro definitivo. Definitivamente capaz.
Mas no amor não é assim. Amor é sempre carta provisória. Pode passar o tempo que for, ninguém se torna definitivo no amor. O primeiro beijo garante a habilitação. O primeiro beijo joga a gente no trânsito. Começamos devagar, sem ultrapassar, sem ameaçar, sem se atrever. O começo faz a gente ligar a seta pro lado errado, não admitir parar sem pisca-alerta e deixar o carro morrer. Não sabemos acelerar direito, não ouvimos o barulho do motor, apertamos o freio sem nem olhar para a embreagem... enfim, erramos.
O amor é uma auto-escola que só admite aulas práticas. O primeiro beijo nos matriculou, mas nem a unção dos enfermos nos gradua. É por isso que não ficamos definitivo.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Sobre comidas

Experimento porque gosto. Assim mesmo. Gosto antes mesmo de experimentar. Admiro quem se despe de qualquer pré-conceito e experimenta as coisas, quase como se desconhecesse sua origem. Acho curioso esse comportamento animalesco de ver a todos os seres – incluindo a nós – como potenciais presas.
Posso estar sendo um tanto antiquado, mas não gosto de comidas exóticas. Não como lula. Não como polvo. Não como testículo. Não como pato, ganso, carneiro e búfalo. Não como rã. Nem dizendo que tem gosto de frango. Não como cavalo-marinho. Aliás, não como nenhuma criatura que venha do mar.
Antes que me apontem o dedo, como carne bovina. Frango, vez ou outra. Mas não vou muito longe disso. Odeio jiló, mas nunca comi. E nem precisei experimentar para odiar.
Primeiro eu gosto, depois experimento. Não como para matar a fome. Como para assassinar vontades.

domingo, 4 de julho de 2010

Sua sombra

Acordei com inveja de tudo que vive em volta de você. Desse ar que você respira, incansavelmente, sem reclamar. Da destreza com que pega o garfo para comer e rompe a pureza da comida no prato. Daquele sapato que espera o dia todo para ser calçado por você e que deixa os outros todos sapatos morrendo de ciúme.
Acordei com inveja do travesseiro que coloca entre as pernas e do lençol que toda noite cobre o teu corpo. Da cadeira que você senta, da sua blusa preferida, do lápis que usa para escrever. Acordei invejando o telefone que cola no seu rosto e faz você sorrir. Como eu queria fazer você sorrir assim.
Hoje eu acordei com inveja daquela carta de amor que você guarda na caixa no fundo da gaveta e que sempre pega para lembrar. Acordei com inveja de todos os seus amores. E do brinco que você pendura na orelha como um troféu. E do colar que enfeita seu pescoço o dia todo. E do vento que faz carinho na sua pele.
Hoje eu acordei com uma vontade de não te dividir com ninguém. Por isso, estou invejando até sua sombra.

Por Enquanto

Todos os dias o caminho era o mesmo. Não mudava de rua, não mudava de lado na calçada, não atravessava em outro sinal. Virava sempre na mesma esquina. Passo na frente de passo, passava por ele mesmo todos os dias. E assim seguia.
Vivia qualquer coisa mais-ou-menos. Conhecia a metade da alegria, sentia a metade do afeto. Toda luz era meio escura. Até que um dia, ele mudou.
Notou que tinha uma placa diferente no caminho. Reparou que o bar tinha virado uma loja de suco e que a quitanda do Zé já não tinha o mesmo dono. Reparou que os meninos que faziam acrobacias para ganhar uns trocados nem lá mais frequentavam. Viu o céu mais azul, o sol mais amarelo e o verde invadia-lhe a vista como um ladrão que invade casas. A beleza das coisas invadia-lhe a vida. Onde ele andou esse tempo todo? Todo dia passava por ali, como pode não ter notado que o muro agora era azul? E porque agora ele reparava em tudo isso?
Alguma coisa acontecia, mas ele não sabia explicar.
Mas não precisa ser nenhum sábio
pra dizer o que se está passando.
É claro que esse homem,
só podia estar amando.