quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Ela é divina, mas mortal

E foi assim que, de repente, como um tropeço na linha da própria vida, você dobrou a esquina. Os passos eram os mesmos de antes e a pele, tão ainda clara e iluminada, não me deixariam enganar. Mesmo que fosse noite, mesmo que você não fosse você. Haveria de te reconhecer do outro bairro, por detrás de qualquer muro, ainda que nem soubesse que você andava por aí. Só Deus sabe o ardor na alma, a queimação no estômago que foi te cumprimentar. Eu, que havia me dado por vencido, que havia hasteado a bandeira branca e declarado derrota, arrisquei cortar o silêncio. Você passou como quem não vê, fingindo acreditar que o silêncio do barulho que lhe buzinava as orelhas pudesse lhe tampar os olhos. Talvez você tenha querido que a música te cegasse, mas de qualquer modo, não seria assim se não fosse você.
Espreitando teu caminho, seguindo milimetricamente o contorno do seu braço enquanto abanava seu andar, eu era farol-alto, era outdoor, era desses panfletos-de-rua que devolvem o amor em três dias. Eu era tudo que pudesse ser, só que mais: devolveria meu amor ali mesmo. Entregaria na hora, sem multa, sem atraso, sem cobrança. Nem me importaria com o seu passado, nem me irritaria com as suas lamentações, pois quem errou, ficou – ali, naquela hora, chamei você como quem grita na beira do precipício que o amor ainda é possível. E você virou – e eu, por profunda inabilidade, não sei precisar a quantidade exata de surpresa e temor que moravam no seu semblante naquele momento. Mas você queria. E veio. E então eu vi.
O cabelo agora fazia marquise para o rosto. Era igual, ainda que diferente. Uma versão melhorada de si mesma, como um vinho maturado, parecia corrigida dos erros de antes. O mesmo quadro, outra moldura, igualmente lindo. Miseravelmente lindo, eu diria, daquela boniteza que deixa o pulmão da gente respirando pela metade. A despretensão era a mesma desses outros tempos. Uma espécie de desdenho e humildade de si que só a segurança e o poder podem trazer para alguém. Mas ela - e se você, com quem divido estas singelas memórias, puder aceitar minha modesta opinião- era tudo isso que existia e mais um pouco o que não contava. Ela sabia ser mistério e ternura quando a boca brincava de dançar. Pois eu não minto, e até por isso, verdade seja dita: Beethoven só compunha para piano porque não conhecia a sua boca. Linda, como os anjos todos numa festa celestial.
Eis que, não mais do que de repente, um poste piscou, teve um rompante e explodiu. “Deve ter ficado emocionado de nos iluminar”, pensava eu, enquanto a ouvia contar do tempo perdido e, ao mesmo tempo, também me punha a falar. Mas pelos cílios, pela ponta das unhas, pelos poros da pele. Cada parte do corpo era uma espécie de boca que gritava por ela. Agora pareciam existir dois tempos: o que acontecia com a gente e o que corria lá fora. O tempo da gente era sereno, de um sorriso amarrado no canto da boca, de olhos que brilham mesmo no breu. Já o outro é desses em que o carro freia na hora que uma criança se põe a chorar quando, sem querer, pisa num buraco e ameaça torcer o pé. Mas desse nada me parecia importante.
Enquanto você falava das coisas em que passou a acreditar, eu imaginava tudo que poderíamos ter aprendido juntos em todo esse tempo.  Mas você não parecia ligar, o dia tinha sido agitado – como todos os últimos, aliás – e, no meio dessa montoeira de compromissos e responsabilidades, me explicava como o Cosmos e o Universo conspiram pelo amor. Não poderia concordar, afinal, se assim fosse, o Cosmos e o Universo estariam definitivamente contra mim sem eu sequer ter sido informado de nada. E foi justo nessa hora que outro poste apagou.
Estava tarde, e agora, ainda mais escuro. “Daqui a pouco já é outro dia”, contava você, enquanto gentilmente ensaiava um jeito delicado de dizer adeus. Pareci passar por cima da despedida como se não me importasse e, sorridentemente, lhe acompanhei até a última fresta da sua pele que meu olho alcançava, enquanto trocávamos conselhos para uma vida melhor dali para frente. Você sumiu da minha vista e eu senti como se não tivesse me enganado um só dia depois de todos aqueles meses. Era você que, como apareceu, foi-se embora. Assim mesmo: Linda, desdenhosa, segura e maldita. Absolutamente cruel e maldita. 
Como são todas as partidas. Os amores. E os mortais.
The Stroll - Edouard Manet

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Quisera agora

Quisera agora, no meio dessa chuva que escorre pela janela, abrir a porta como quem rompe o ventre e beijar a sua boca, lenta e calmamente. Calmo, como quem tem todo o tempo que ainda não gastou para perder com você.
Quisera agora, sem pedir de antemão, sem fazer aviso prévio, simplesmente sair pela rua com passos acelerados, sem notar que a chuva aumenta e a roupa já não sabe onde termina para começar a pele. Sair assim, como quem não calcula a medida do corpo e confunde o passo com a calçada molhada.
Quisera agora, de repente, sem ninguém esperar, me fundir ao caminho em que demoro em chegar até você e, nesse meio tempo, ensaiar um ou dois discursos ou desculpas que jamais usarei.
Quisera agora, sem medo de causa ou coisa nenhuma, tocar a campainha com uma mão ao mesmo tempo em que bato na porta com a outra e imaginar que você estaria a minha espera mesmo sem sequer saber que eu viria. Uma vez eu ouvi que o amor conhece o seu tempo e ali, justo naquela hora, eu estaria preparado para descobrir que isso é verdade.
Quisera agora, e só agora, por Deus, por todos os santos, saber que você pensa em mim com toda a intensidade que o faço e que está tão desejosa deste acontecimento quanto eu.
Quisera agora, pelo lençol que te cobre nessa noite fria e úmida, não me importar com a camisa, com o presente, com a barba, com a fivela do cinto e, mesmo assim, ouvir de você que nada disso importa perto de tudo que você tem guardado e que deixou abrir, junto com a porta.
Quisera agora, depois de romper as cascas de todas as casas, olhar-te bem nos olhos, como um marinheiro que, admirado, avista a lua, para descobrir que, por detrás do olho, ainda mora uma centelha pronta e alucinante para arder em brasa.
Quisera agora, depois de tudo isso, simplesmente abrir a porta como quem invade a vida e beijar a sua boca, calorosa e urgentemente. Urgente, como quem tem todo o tempo que ainda não gastou para perder com você, mas que sabe que ao teu lado, uma vida inteira será sempre insuficiente.
Gli Amanti Azzurri - Marc Chagall

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Sobre dizer silêncios

Hoje senti uma felicidade perigosa e achei por demais conveniente vir aqui lhe escrever.  Eu não sei bem como começar e nem o que dizer, pois o que eu queria mesmo, na verdade, é te dizer sem falar nada. Será que isso é possível? Deu vontade de falar um monte, de como eu me sinto, de como eu te gosto, de como a gente se dá bem, mas achei que escrever isso tudo faria com que o mistério perdesse um pouco da magia. E essa é a última coisa que eu quero que você sinta nestas linhas: falta da magia.
Podem não ser as mais bonitas que você já tenha lido, nem as com as melhores palavras ou as que mais respeitem a concordância gramatical, mas tenha certeza de que foram as primeiras que vieram e isso, meu bem, merece um pouco de consideração. Fui deixando vir e passando direto para cá, sem editar palavra alguma, sem ajeitar vírgula depois, sem procurar sinônimo no dicionário, pois eu sei que a vida já é muito romanceada e pelo menos na ficção eu espero um pouco de realidade.
Espero que me perdoe o desatino de lhe escrever esse começo descomeçado e com essa pretensão toda de lhe falar pelo incomunicável sentimento que gerou as palavras. Se você lesse e me perguntasse depois o que eu pretendi, responderia exatamente isso: pretendi te guiar pelo que antecede a palavra.
Pense num lindo jardim, com todo tipo de flores e cheiros, incluindo as que você mais gosta. Imagine que dessa imensidão verde-roxa-avermelhada, é possível ver uma de aparência estranha, que não nos mostra direito se está brotando ou se pondo. Pois bem, você foi até ela e, quando inspirou, sentiu um cheiro único, que nunca havia vivenciado antes. Agora você está a me contar essa experiência, mas tentando me falar não do que você sentiu com o cheiro, mas do que antecede a sua sensação do cheiro, que é, senão, o cheiro em si. Entende? Essa é a minha vontade, mas eu reconheço que a esta altura esteja confundindo até a mim. Isso é um tanto por conta do nosso acordo lá no início, que foi o de deixar as palavras escapulirem pelo vento, sem botar tela na janela. Escrever assim, com uma letra puxando a outra pela mão.
Movido por tanto sentimento, podia ter sido um texto mais bonito, você dirá. E eu reconheço. Mas nem tudo que eu quis lhe dizer está aí escrito e eu espero, ansiosamente, que você saiba ler as entrelinhas. Tudo que eu pude escrever, eu escrevi. Depois do ponto final, ainda haverá texto. Será que você vai saber me enxergar depois da curva? Pois bem, até breve. Vou escrever silêncios agora.
Les Coquelicots à Argenteuil - Claude Monet

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Limite

E como é que se livra deste desejo incontrolável de traduzir o mundo em versos?

Defini limite:
Só enquanto houver uma folha,
Escondida debaixo de alguma pedra,
Impedida de seguir o vento,
Continuarei a escrever.
Vento - Van Gogh

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Quando tudo não é suficiente

Fracassei. Miseravelmente fracassei. Tudo que deveria ser feito, eu fiz e não bastou. Quando tudo não é suficiente, faz-se o quê? O além do tudo? O mais do que o tudo? Mas se o tudo tem um mais ou um além, não é ainda o tudo. Então não é desse tudo que admite excesso que eu falo. Falo do tudo que esgotou as possibilidades, do tudo que redefiniu a própria margem para nunca saber quando começa o limite. E quando esse além-tudo não é suficiente? Alguns dirão a conformidade é o caminho inevitável, mas não gosto – nem do conformismo, nem do inevitável. O caminho mais fácil nem sempre é o certo e nem todo atalho corta caminho. Tem caminho que a gente mesmo corta.
Se você soubesse que seria a última vez, teria feito como? Um até logo para confundir a despedida? Não adianta confundir. Você sempre sabe quando engana a si e nenhuma vida vale se for, declaradamente, ao erro.  É errado, te digo desde já. Escolher o caminho mais fácil pelo menor esforço é sofrer por duas vezes, e você já pode sentir o peito sangrar antes mesmo do corte. Não quero viver de cuidado, eu quero mais é que meu peito exploda. Quero mais é que ele se encha tanto de amor e ódio, que exploda, de repente, como uma bexiga que transborda de ar. E quando ele explodir, não quero estar preparado. Quero me sentir sozinho, perdido, dando rodopio no olho do furacão. Quero morrer de amor e de raiva e de ódio e da coisa toda junta. Amar e odiar, ao mesmo tempo. Nada é mais libertador que isso.
Quando tudo não é suficiente e o extraordinário é pouco, tudo que posso dar é meu tempo, enquanto eu ainda o tiver. E se mesmo assim nada puder ser feito, ainda haverei de contar a história de amor mais linda e mais triste que já existiu. E vou acrescentar aquelas partes que ficaram faltando, se a gente não tiver mais tempo para acabar. Quanto a isso, não se preocupe.
Jamais me esquecerei da história mais incrível que a gente não viveu. Mas poderia.
Foto de Martha Graham

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Deve ter sido muito para você

Deve ter sido muito para você um olhar que te atravessasse, que não te notasse pelo meio, nem pelas bordas. Deve ter sido muito para você alguém que te visse inteira em cada parte tua, que por medo ou resistência tola, você insistia em dividir.
Deve ter sido muito para você uma mão que não soltasse a tua ou um abraço que não se abrisse logo depois do aperto. Deve ter sido muito para você imaginar alguém que não fosse embora no dia seguinte; ou que pedisse desculpas por ter se esquecido de ligar devido a algum eventual atropelo da rotina. Deve ter sido muito para você imaginar alguém que te ligasse para não falar nada. Falar pelo silêncio é das intimidades mais desonestas que existem – e você sabe disso, tão bem quanto eu. Quando não se troca mais palavra, aprende-se a falar pelo canto do olho, pela ponta do nariz, pela parte caída da orelha – pouco importa por onde, na verdade, pois quando não se troca palavra, o corpo inteiro vira boca. Deve ter sido muito para você imaginar um corpo que se beija e se comporta feito língua.
Eu imagino que deva assustar quando alguém vira o binóculo para olhar para dentro. É mais fácil ser leve. É mais fácil ser folgaz, líquido e leve, como uma pena que paira no ar, mas não sabe reconhecer o pássaro de que se desgarrou. Acha que nasceu pena solta, e voa. É só uma pena que voa. É bonita porque voa. É encantadora porque voa. E só.
É mais fácil ser leve sozinha do que dividir o peso da perna com alguém. Mas para te falar a verdade, conclusiva e definitivamente, não sei bem porque me dei ao trabalho de lhe escrever estas amargas linhas. Deve ter sido muito para você ter chegado até aqui, afinal, você nunca soube mesmo escutar os meus silêncios.

terça-feira, 26 de julho de 2011

Do valor de ser precioso

Se adular com o reluzente,
é tapar o ouro que não brilha,
mas pesa.
E que peso, afinal, tem o tal ouro
diante de carvão cristalizado?


Não se pode, por ventura, hostilizar,
nem depredar o pobre esplendor.
O ouro -embora convenção-
tem ainda o seu valor.

Mas o que reluz não me impressiona,
nem me tira do lugar.

O que vive de mostrar reflexo,
o que sobrevive da exatidão,
tem hora-dia-mês
e prazo de duração.

Se o ouro é precioso
e se engrandece na lapidação
o valor afinal, é do ouro
ou da mão do artesão?

O que transpassa, obviamente,
sempre me teve mais valor.

Que chata são as coisas que vivem
de ser-se apenas.
Eu não quero ser o que sou
e só.

Eu quero ser além

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Não me importa o final

Não me importo com finalidades.
O que sai de um ponto,
E necessariamente chega em outro,
Não me toca.
Tudo que me vale é o meio da linha.

Eu não vou para lugar nenhum,
Pois nunca estive em nenhum lugar.
Estou sempre na metade do caminho.
-preso-
 Entre o que eu quero ser,
e o que, invariavelmente,
 fui.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Sobre esquecer o amor

Falava com um amigo sobre doer e sofrer por amor. E ele me dizia sobre como se passa por cima da saudade e da dor.  Dor de amor não é esquecida, é cicatrizada. É aterrada de cal e cimento para que se possa voltar a pisar e, assim, seguir em frente. É tatuagem que se faz na pele para esconder a cicatriz. É qualquer coisa que some, mas não desaparece. É qualquer coisa que se esconde, mas não se esquece. Dor de amor é fingir.
            Fingir que ela está com outro e você não se importa. Fingir que não quer saber se ele ainda usa aquela camisa que você deu no último aniversário. Se ela está mais magra, se ele está mais forte, se eles parecem mais felizes. É um desimportar simulado que é mais presente que a própria importância. Se pensa tanto em não se importar que acaba se importando muito mais do que antes.
Esquecer alguém é como se livrar de alguma droga. Antes de tudo, é preciso que haja desintoxicação. Vai comprar um pão e outro aparece. Vai escrever um texto e o outro aparece. Vai ler um livro e o outro aparece. O outro é pensamento invasivo, é ladrão da nossa autonomia. É preciso que se vá, pouco a pouco, diminuindo sua dosagem.
É inevitável que se doa. Esquecer alguém é antes de tudo assumir a dor. Não é ter medo dela. Nem dizer que a dor não existe e que o outro passou sem deixar nada. Mais do que deixar, o outro, inevitavelmente, leva um tanto da gente. Cada um que passa, despedaça um pouquinho a nossa alma. Por isso que, para esquecer alguém, é preciso, antes de tudo, ostentar a dor. E pisar nela com os pés descalços, até calejar a sola. Até que de tanto vidro, corte, arranhão e cicatriz, a dor se esquece de doer. E aí você segue em frente.
Um amor não se esquece, mas cicatriza. Cicatriz é ferida sem dor. Haverão de se reconhecer, uns aos outros, pelas marcas da batalha. Esquecer, então, é fechar os buracos que deixam na alma, e seguir.  Aguentando o peso extra daquela dor em coma. Daquela dor que, aparentemente morta, pode tranquilamente, anos depois, renascer como se desconhecesse o óbito. Viver é aguentar o peso de todas as dores, e seguir. Mais cedo ou mais tarde, a vida sempre segue.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Para que ela me leia

Para que ela me leia
Não posso escrever difícil
Mas dificilmente escreverei como ela quer

Para que ela me leia
Não posso ter dúvida
E nem certeza demais

Para que ela me leia
Não posso pedir muito
Mas parecer um tanto indiferente

Para que ela me leia
Tenho que fingir que não importo
E deixar o papel meio amassado

Para que ela me leia
É preciso ter paz
Mas um pouco de inferno também

Se ela não me ler
Nem triste vou parecer
Quero minha alma furada
de silêncio

Mas no final
O que escondo e não direi
É que tudo que quero
É ser descoberto por ela
 O gênio, a mulher e a leitura - Vincent Van Gogh

quarta-feira, 18 de maio de 2011

La fille sur le train (a menina do trem)

Comprou o bilhete e deixou a roleta passar.
Suas costas passavam pelo mundo.

Um carro não viu o avermelhado do sinal
E seguiu.
O cachorro que passava na rua quase
morreu.
A moça voltando do trabalho só queria
Dormir.
Mil vidas e o dobro de sonhos
Passam pela porta recém-aberta.

A menina chora no vagão,
Mas ninguém teve tempo de ver.
O que será da vida dela?
Penso que alguém possa ter morrido,
Ou o sujeito que a amava,
Subitamente tenha desistido.

Ouço o apito e me desfaço daquela cena.
Nunca saberei o que acometeu a pobre moça,
Nem estarei presente quando a lágrima secar.

Na minha memória,
Ela viverá para sempre como foi.
E enquanto este rabisco existir,
Para sempre a menina irá chorar.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Só o provador diz a verdade

Mais do que roupas, a mulher divide com o provador uma cumplicidade de melhores amigos. Afinal, ele é a única testemunha do que ela jamais usará.

É no provador que a mulher se descobre, não em casa. O espelho de casa é viciado em fingir que não vê. Como a Rainha, de Cinderela, o que ouve em casa é sempre o que tem de especial. O vidro doméstico é lapidado para exaltar virtudes. Pode tudo estar ruim, mas só o que é belo será visto.

No provador não. Entrar em um é como ir para a guerra de pijamas. Não veremos nossas virtudes, mas aquilo que tentamos esconder. O espelho se encarregará de examinar. Trocaremos de roupa conscientes disso. Nos conheceremos pelo olhar do outro. Não adianta tapar. Não adianta fingir. Não adianta fazer-se de desentendida. Ele estará lá, soberano, como um Reality Show estético, mostrando tudo aquilo que o doméstico tentou esconder.

Não se é visto pelo provador, mas analisado. É o olhar do outro que vai nos dizer se a blusa verde fica boa, se as calças estão apertadas ou se está na hora de frequentar o Vigilantes do Peso.

Nenhum será igual ao outro. Cada loja abriga em seu provador um senso de humor próprio. E a mulher, ao longo da vida, vai descobrindo com qual tipo tem mais afinidade. Não é a roupa que vai determinar o gosto pela loja. Não é a variedades de cores das peças. Nem se o vendedor foi ou não simpático. Nada disso importará, se o desempenho naquela casa dos espelhos não for bom.

Entrar num provador é assumir o risco de ser visto. É aceitar o despudoramento do olhar estrangeiro. A mulher não compra uma roupa quando gosta dela. Ela compra quando consegue flertar com esse olhar.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Poema antiofídico

Palavras são minhas maiores armas.
Não tenho medo de escuro,
Não sou diabético,
minha homeopatia se dá pelas letras.

Por isso não tente me encantar com um punhado
De algumas bonitas e bem colocadas.
Dessas que vem milimétricamente calculadas
como se acompanhasse um manual de instrução.

A beleza não mora em palavras bonitas.
Ela se esconde é nas palavras sinceras.

Não quero beleza que não for de verdade.
Afinal,
Não se esqueça de que sou poeta também.
E não caio fácil no meu próprio veneno.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Desejo

Finalmente estou aqui e não sei o que fazer.
Estou aonde sempre desejei estar,
na oportunidade perfeita,
mas existe algo que me impede de seguir em frente.
Estamos apenas os dois.
Ela, abaixada,
parece dizer alguma coisa,
mas eu já não consigo ouvi-la.
Estranho esta sensação de estar em outro lugar sabendo que não se está.
Eu poderia ajudá-la a se levantar.
Eu poderia me abaixar e fazê-la companhia.
Mas não é isto que eu espero.
Vou ser bem sincero:
desejo matá-la.

domingo, 10 de abril de 2011

Terra Perigosa

Como Prometeu mostrou ao homem
O que era só divino
Ela me faz lembrar
De tudo que eu sequer podia

Esquecido no vale da sombra
Fazendo fronteira com a beira da morte
Meu amor jazia triste
E vivia da própria sorte

Mas aí ela chegou
E o açúcar que acabou
O tanque que esvaziou
A família que brigou
Não me teve mais importância

Ela vive iluminada
Ornada de bilhares castanhos
Penso estar gostando dela
Mais do que eu deveria

O amor é coisa doida, Catarina
Ele pode me matar

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Nunca

Nunca havia ganhado nada dela. Nem muita atenção, na verdade. Mas havia algo que o fazia continuar a se dar. Não precisava de muito para entregar tudo de si. Ele era desses que não dependem do Santo, o que importa é a força da oração.
Ela estava mais ou menos ali. Ele estava ali até a próxima vida. Ela perguntava se ele podia acompanhá-la. Ele antevia seus passos. E via seus pés pisando antes mesmo de levantar do chão. Amar é antever o outro. Ele sentia falta dela. Ela até sentia algo que nunca disse o que era.
Um dia, de repente, ela disse que aquele sol nascendo era seu presente para ele. Aquilo bastou para amá-la por toda vida. Ele que se acostumara a viver de catar os pedacinhos dela que caíam pela rua, havia ganhado o sol. E retrucou, de pronto. Disse que se aquele sol era dele, todos os outros seriam dela. E a lua também. E todos as estrelas que brilhariam aquela noite e em todas as noites que se seguissem a partir dali. E também todas aquelas que já não existem mais, mas que ainda conseguíamos ver. Amar é ver o que não existe.
“Ele me valeu o dia” ela disse, enquanto amarrava o cadarço dos tênis.
“Ela me vale a vida” pensou ele, enquanto olhava para dentro de si.
Ele a amava. Ela mais ou menos. Isso nunca foi amor, mas ele não sabia. Achava que por si, sustentava o amor dos dois. Coitado.
O amor é uma via de mão dupla que não permite retorno. Só é amor quando vem na contra-mão. E esse foi seu maior erro. Ele não a achava por uma razão muito simples: havia se perdido até de si próprio.
Amor é bagunça.

domingo, 3 de abril de 2011

Sobre o recomeço

Sempre interessou-me a possibilidade do recomeço. Mais do que começar, o recomeço é exercício do esforço e da vontade. O início, geralmente, tende a ser espontâneo, natural, se dando quase que por explosão. O início é a explosão do acaso. Conhece-se alguém e, naturalmente, há um envolvimento. O pequeno cão, ainda filhote, chega e, facilmente, toda a casa se reconhece por um afeto outrora incomum. Incomum, mas natural. Não tem nada de incrível nisso.
Sempre interessou-me a possibilidade do recomeço. Encanto-me com a idéia de fazer de novo. Não é amar o pequeno cachorro apenas, mas amá-lo ainda mais depois de ter seu tênis destruído. Não é gostar de alguém atraente, mas se atrair por alguém que agora é quase um estranho. Plantar em terra fértil é garantia de boa colheita. Mas plantar em solo queimado, já quase sem vida, com sol fraco e chuva constante, é muito mais emocionante.
Não um relacionamento que se inicia, mas alguém que depois de algumas décadas juntos, redescobre em meio à obscuridade um novo sentido para amar. Dar chance ao outro de ser diferente. Se permitir ser diferente.
Cuidar da terra seca em busca de vida é refazer o que já está perdido. É olhar de novo, o que já estava esquecido. É perceber que chegou o Outono e, mesmo assim, ainda haver a vontade de cultivar um belo jardim.
O dicionário diz que recomeçar é tornar a fazer depois da interrupção. Pois não é. Recomeçar é ofício da continuidade. Quem busca no outro a esperança do recomeço já busca em si a possibilidade de ser alguém melhor.
E a menor intenção de ser melhor, já é amor.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Amada

Torno minha vontade a vontade dele
E me deixo levar pela sua melodia
A voz doce com que fala em meu ouvido
Enquanto me puxa quando vou embora

Comigo ele é assim.
Doce,
Quando me digere devagar.

Ele tem o dom
de embalar todo o meu corpo
Meu desejo e minha vontade
Com a sutileza de quem respira baixo
Para não acordar

Ele me cria feito semente
E me deixa nascer por inteira ali
No canto
fértil
Da sua boca

segunda-feira, 21 de março de 2011

Rascunho

Quando tomo um papel e uma caneta,
logo me vem o desejo de escrever poemas.
Não sei escrever as coisas planejadas,
fui dispensado da reunião dos que sabem demais.

Acredito que exista um lugar onde as palavras convivem, umas com as outras, até ficarem bem velhas e gastas e forem postas numa dessas gramáticas ilustradas para assustar estudantes. Palavra também fica triste e chora, chora, em cada ponto final.

Escrevo poemas como quem busca tirar a pedra do contorno da escultura.
Não tenho como pretensão imortalizar palavra nenhuma.
Aliás, não escrevo poemas nem com a pretensão de que assim o sejam.
Escrever com a alma é desapegar-se do que se pretende. Mas é assim mesmo que eu gosto.
Há um charme inexplicável para o que existe além das linhas.

E dirão que esse texto não tem sentido e perguntarão o que deu em mim.
Nem tudo existe para fazer sentido, responderei. Nem mesmo eu.  

domingo, 23 de janeiro de 2011

Coração de vidro

Viver de resto é juntar os cacos de amor que ficam pelo caminho.
Há tempos venho notando que meu coração é um tanto de vidro,
daqueles que não suportam nem muito frio, nem muito calor.
Foi feito para viver na brisa de algum sol que está se pondo.
Mas perto de você é inevitável que ele rache.
E mais ao teu lado ainda, é inevitável que ele se quebre.
Porque, meu bem,
O calor do teu corpo no meu
es quen ta

sábado, 22 de janeiro de 2011

Despedida sutil

Não me coloca na sua vida sem querer. Não me faz querer pensar em você a cada hora que passar. Não me faz querer te impressionar na tarde de uma segunda-feira. Não me apresente aos seus pais. Nem aos seus amigos.
Não me faz decorar o seu aniversário. Nem as coisas que você gosta. Não me faz ter que lembrar sempre que a sua parte da pizza é sempre sem cebola. E que você gosta que eu te segure pelo pescoço.
Não me conta sobre o seu trabalho. Nem que ainda está estudando. Não me conta dos seus planos para o futuro. Nem me inclua em nenhum deles. Não te faça ser importante para mim. Eu mesmo não vou ser para você.
Não me faz perder as horas ao teu lado. Não me diz que você ama a minha companhia. Nem me faz amar a sua.
Não me faz rir contigo. Nem me faz ser a pessoa que você vai ligar quando achar que está muito doente. Não me faz preocupar com você. Nem se preocupa comigo.
Não me coloca na sua vida sem querer e depois me tira dela assim de qualquer jeito. Até a despedida pede um pouco de sutileza.

sábado, 15 de janeiro de 2011

Entre a gente vivia um Pessoa

Já tive memórias de que nunca mais lembrei
Mas jamais me esquecerei dela naquela noite.
Seu sorriso brilhava o céu,
e, enquanto ela falava,
eu me ia prendendo no quadriculado de sua roupa.
Do choro foi-se ao riso.
E riu até esquecer porque chorava.
Poucas coisas me são tão certeza
quanto esta que lhes vou contar:
Ela é linda quando lê Fernando Pessoa.

domingo, 9 de janeiro de 2011

Post Scriptum

Depois de tudo o que eu lhe disse
Fica ainda a questão
Quantas linhas consigo escrever
Só com a palma da tua mão?

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Desilusão

Tenho pena do meu cachorro quando pensa que vai tomar banho. Todo se alegra, levanta e corre em busca do sol, já considerando a cumplicidade que seu corpo terá com os raios em breve. É o mesmo que sente a criança que imagina ganhar o que espera no Natal. Poucas coisas são mais tristes que uma criança desiludida. Desilusão é sentimento humano que os bichos aprenderam.
Sempre achei curioso a palavra humano. Como pode se referir tanto a homens quanto a mulheres?
Talvez por isso tenha tanta dificuldade em chamar meu cachorro pelo nome certo. Meu cachorro é fêmea. Seria uma cadela – ou cachorra – mas considero isto tudo muito vulgar. Por isso, me dou ao direito de chamá-la de cachorro, mesmo não sendo. Gosto de me enganar, as vezes,
Me iludo para alimentar minhas paranoias. Elas nunca ficam desiludidas.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Amor Esfarelado

Gosto de você como se gostasse de um biscoito.
Recheado, partido, quebrado, não importa.
O que importa é que ele existe.
Ah! Meu amor por você existe.
Se é doce, salgado, meio amargo, já nem sei.
Mas de que me importa saber dizer?
Amor bom é aquele que quando chega, bagunça tudo.
E parte, e quebra, e desarruma tudo na gente.
Porque amor bom é sempre assim, até quando esfarelado.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Senilidade do amor

Guarde as tuas frases de efeito, teu sorriso no canto da boca e sua vontade de querer ficar. Planeje suas férias sozinho, seus passeios sozinhos e as vezes que quiser ficar em casa, também. Não quero nada mais que venha de você.
Não estudo sua pregação, não prego mais a sua doutrina e acredito que jamais tornarei a fazer. Acontece que se eu não admito vacilar comigo, muito menos admitiria sendo com você.
Você errou, principalmente, quando me disse que não erraria. Aliás, também eu errei por ter acreditado nisso. Como sustentar um erro que se justifica noutro?
Como cobrar de volta todas as vezes que tirei o termômetro quando você teve febre ou todas as vezes que lhe cobri quando fazia frio?
Como cobrar a vela de todos os bolos que ficarão sem ser acesas, tendo eu, ao teu lado depois, para apaga-las?
Contigo descobri a vida e esperei a morte. Ao teu lado renasci quantas vezes foram precisas. Mas agora não.
Não quero nada que venha de você. Mais ainda, não quero que você venha nunca mais de volta.