sábado, 20 de novembro de 2010

Vivendo - e morrendo - segundo as regras... gramaticais!

Paulo era um sujeito simples, nada diferente desses que se encontram em qualquer esquina. Embora aparentasse, porém, não era nem de perto esses comuns. Era substantivo próprio de si e de suas vontades. Não deixava nenhuma no final da frase.
Até que um dia encontrou Maria Elisa. E não tardou para o sujeito se transformar. Viu a moça uma ou duas vezes e foi o suficiente para se render aos seus predicativos. Mudou de número, de grau e desde então, só pensava em ser composto ao lado dela. Mudou até de lugar, procurando seu espaço na oração de Maria Elisa. Mas ele não era bobo e foi logo montando a cena. 'Eu, tu e toda a felicidade do mundo' foi o que propôs a moça sem nem saber se ela tinha ou não complemento. Pobre do Paulo de pensar que aquela morfologia toda não teria já alguém que a classificasse.
Aludiu, citou e até definiu, mas nada era capaz de despertar a feição da moça. Maria Elisa não era dessas preposições que se engraçam com qualquer sujeito não. E Paulo, só não mudou de gênero porque era dessas regras que não admitia exceção. Botava uma coisa na cabeça e ia até o sufixo da questão.
Sem conseguir por força de suas próprias derivações, nosso amigo, que nunca foi subordinado, prestou-se a fazer algumas orações. Pensava que 'se Ele existe mesmo, vai me conceder a graça de Maria'. Mas não teve efeito algum, afinal, Maria Elisa já tinha seu sujeito oculto – que Paulo, sem nem conhecer, já considerava-o bastante indeterminado.
E quase cheio de suas próprias tentativas, falou com a tal da Elisa num tom oblíquo que só ele conseguia. Cansado de enrolação, foi até ela para colocar um ponto final – ou reticências, já que dependia da vontade da mocinha. Disse que não era de se abater por qualquer conjugação, mas não suportava a ideia de viver um amor coletivo. E mandou ela decidir: eu, contigo, ou tu, sem ninguém?
Curiosa a história de Paulo. Ele nunca foi dessas abstrações de amor, mas depois de Maria Elisa, não pensava em uma só coisa concreta. E foi por isso, também, o seu fim. Depois de colocar exclamação na vida da pobre moça, resolveu, também, terminar a própria história.
Armou-se da coragem dos artigos definidos e com um desses objetos indiretos, morreu. Intransitivo que só ele.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Mar e Cela

Já cruzei outros oceanos
Noutras embarcações até bem melhores do que esta
Mas agora é diferente
Pareço atravessar uma arrebentação inteira
Num barquinho desses de papel
Teu mar é minha cela
Me prendi na tua correnteza

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Velho como um fusca

Não quero morrer velho de espírito jovem. Não quero me poupar de nada. Quero rir toda vez que minha barriga quiser doer e chorar toda vez que tiver vontade. Não quero me preservar de desgaste.
Quero destruir todas as amizades que forem precisas para descobrir todos os casos de amor que possam estar escondidos nelas. Não quero evitar nada.
Não quero me acostumar com o sofrimento das pessoas. Nem com o mau-humor de ninguém. Quero viver amando e me decepcionando. Quero todas as decepções que eu puder ter. E que cada decepção não diminua, mas reerga meu amor.
Quero aprender tudo que eu conseguir. E ter a certeza de que cada aprendizado novo me abrirá uma infinidade de outros tantos, que eu também desejarei aprender. Não quero me privar de nenhum desejo.
Não quero chegar velho sem arranhão na lataria. Quero velhice com amassado, banco rasgado e sem estofamento.
Não quero morrer velho de espírito jovem. Quero morrer um fusca bem antigo, com a porta empenada. Que cada batida defina a nova sinfonia. Quero dançar ao som da orquestra de uma porta empenada. E tropeçar todas as vezes que minhas pernas enroscarem nas tuas.
Quero morrer um fusca velho. E com a alma calejada.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Mudo

Se calado come-se duas vezes
E se esteve certo quem contou
Divina benção é não falar
E aproveitar o amor que não se espalhou.