quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Golpe mortal

Falta luz na minha cidade toda vez que você não passa.
E não tem prédio que se segure em pé.
Criança alguma evita o choro, cachorro algum evita latir, o pedreiro não para de quebrar a calçada.
Pelo contrário, é sempre de muito barulho a sua ausência.
Mas isso na rua, com os outros, porque em mim é tudo oco.
As borboletas todas hibernam toda vez que você não passa.
E meu coração vai desacelerando, à medida que não te vê.
Mas quando você não não fala comigo e torna a não falar,
Eu vou quase morrendo, de pouquinho em pouquinho,
nos espaços entre os seus silêncios.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Cadê você que não está aqui comigo?

Eu sei que você está toda esquisita, e, em parte, eu entendo. Acontece que eu estou precisando de um lugar para recostar a cabeça, um abraço despretensioso e alguém que escute o meu silêncio, sem picuinhas. Com a bandeira branca e o orgulho no lixo, te escrevo estas linhas. Você pode ignorar, fingir que não viu e seguir a vida. É uma possibilidade. Mas primeiro atiro a pedra para depois ver se quebro ou não o vidro. Acho que só de você estar lendo esta mensagem, já me sinto em parte abraçado. Não sei porque, mas estou triste.
ps: espero que não se importe de ter tornado do mundo o que era só de dois.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

O que aprendi com Tracy


   Quando mais novo, dividia espaço com uma husky siberiana de nome Tracy. Na verdade, o espaço era dela e eu o invadi quando nasci. Ela reinava no terraço já fazia uns três anos quando eu apareci. Fazia dali seu reino e marcava território com ossos, bolinhas e algum punhado de ração. Tracy era a dona da casa e, eu, um intruso.
   No começo nos estranhamos. Ou melhor, ela me estranhou. Protegido pelos muros maternos, ela não era capaz de rompê-lo e ver a criatura que existia por trás dele. Era alguém que chegara tirando espaço, atenção e carinho. E ela, tudo que podia fazer, era me olhar de longe para tentar compreender porque perdera, de uma hora para outra, todo seu patrimônio. Agora era espaço para dois. Carinho para dois. Uma linha no meio separando os dois mundos. Era tudo meio humano, meio animal. E assim o tempo foi passando para os dois.
   Eu engatinhando e ela crescendo. Viciei na chupeta e ela crescendo. Eu andando e ela crescendo. Eu entrei na escola e ela crescendo. Passei do gemido ao bê-á-bá, abandonei a chupeta para me viciar na mamadeira, e ela crescendo. Parei de fazer xixi na cama, parei de procurar a cama dos meus pais, conheci a programação da TV e ela continuava crescendo.
   Até que um dia eu aprendi a correr com as próprias pernas e ela teve medo de descer as escadas. Aprendi a nadar e ela passou a fugir da água. E aprendi a andar de bicicleta, mudei de endereço e descobri que não levava jeito algum para andar de patins. E ela, continuava a mesma. Não havia mudado nenhuma parte. E então eu percebi que, a partir de então, quem crescia era só eu. Ela, agora, estava envelhecendo.
   Eu descobria, ela esquecia. Eu saía, ela ficava. Eu corria, ela parava. Eu gostava, ela resmungava. Eu mexia, ela empurrava. Lambia meu afeto mas rosnava para o meu carinho. Como um lobo que renega a matilha, nunca mais foi vista pela rua. Era agora refém de sua própria companhia. Todas as noites admirava a lua e gritava com seu uivo, como quem se cansa da vida e pede para ir embora. Assim foi Tracy quando atingiu os quatorze humanos anos. Já carregava em seus grisalhos pêlos nove e tantas décadas caninas. E dizia isto por seus olhos bicoloridos que, a essa altura, já estavam cansados de ver. Chega uma hora em que se enxerga melhor de olhos fechados.
   Certo dia, Tracy amanheceu estranhamente cansada. Acordou com a cabeça sob o pote de comida. As patas sustentavam o já cansado corpo, que chorava como quem não agüenta mais sustentar a própria alma. Seu rim parou de funcionar e ela queria urinar. Tracy queria comer, mas seu estômago já não se alinhava com o resto do corpo. Tracy estava cansada da vida. Tracy pedia por seus olhos para morrer. E foi então, numa bela manhã de sol, que Tracy, nos braços de meu pai, se despediu da vida.
   Não deixei acontecer. Não conseguia entender o que estava acontecendo, mas não ia deixar ela ir embora assim. Não agora. Lembro que pedi para ela parar de ficar velha, afinal, chegaria uma hora em que a gente ia poder envelhecer juntos. Pedi para ela levantar. Pedi para ela parar com aquela brincadeira. Na minha cabeça, Tracy brincava de morrer. Ela não viu o Natal daquele ano, nem o ano novo que em breve começaria. Tracy não ia mais usar coleira. Não ia mais ganir tentando fugir do banho. Não ia mais uivar para a lua. Nunca mais me veria fazer aniversário. E crescer mais. E depois envelhecer como ela. Tracy não veria nada mais a partir daquele último suspiro. Assim como uma luz que se apaga, seus olhos eram todos escuridão.
   Andei pela casa catando todos os cabelos caídos de seu corpo morto. Pêlo por pêlo, amontoava-os em minha mão. Coloquei todos embaixo de meu travesseiro. Minha mãe tentou impedir. Perguntou, em meio à cara chorosa, o que eu faria com aquilo. E eu respondi que ia fazer uma outra Tracy igual. Cabelo por cabelo, ia construindo Tracy na minha cabeça. Ia trazê-la de volta. Ainda que não fosse capaz, tentaria. Inventava seu novo jeito. A cor dos olhos que ela teria. A extensão de seu corpo. A disposição de sua corrida. Já estava pronta na minha mente.
   Já amava o que nem conseguia ver. E já cansava de imaginar seu pique. Já ria de suas manhas. Tracy era real, ainda que fantasiada. Eu já amava o que só existia na minha imaginação.
   Um amor inventado nem sempre é mentira. Aprendi com Tracy que inventar já é, quase sempre, um ato de amor.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Quando a mulher é mais bonita

  Existe um engano muito comum na maioria das mulheres, que é o de achar que a beleza nasce do esforço. Minhas caras, não se enganem. Equivocadas, entopem a cara e os poros com pós importados, que fazem companhia para outros tantos pós multicoloridos. No final, parecem vir de alguma peça de teatro Kabuki. Parem com essa ideia de achar que uma calça que sufoca as pernas e começa a nascer embaixo do cóccix é a realização da sensualidade. Não é!
   A beleza não mora no pó, no lápis, no batom e nem em coisa alguma desse tipo. A sensualidade não se fortalece em decotes extravagantes ou calças de cintura tão baixa que chega a mostrar até um ou outro pelo púbico. A beleza feminina não está aí.
   A mulher não é mais bonita quando coloca brincos enormes, salto alto e uma saia presa com cinto que quase beira o pescoço. Não é isso que faz a mulher mais bela.
   O que faz de vocês, mulheres, mais belas, é exatamente o oposto disso tudo. Não é o quanto se arrumam, mas o que deixam de fazer. A mulher é mais bonita quando usa calça jeans e uma blusa branca. A mulher é mais bonita quando prende o cabelo quando faz calor e deixa escorrer o suor pelo pescoço. A mulher é mais bonita quando ri de um jeito diferente e expõe seu pescoço. Poucas coisas são mais sensuais do que expor o pescoço enquanto o dedo passa pelo cabelo.
   Sinto pena daquelas mulheres que perambulam completamente enfeitadas, andando por aí feito árvores de natal. Mulheres, embora as revistas e programas de televisão queiram convencer-lhes disso, a beleza não existe no que se faz para parecer bonita.
   A beleza não mora na roupa cara, na maquiagem cara e nem no sapato caro. A mulher é mais bonita quando conta uma piada para os seus amigos. A mulher é mais bonita quando é carinhosa com quem não se espera que ela seja. A mulher é mais bonita quando é educada e sabe pedir a conta para o garçom sem parecer deselegante.
   A mulher é muito mais bonita quando não se acha bonita. E usa aquela blusa velha na sua frente, sem ficar com medo do que você vai pensar dela. 
  A mulher é mais bonita quando sua beleza não vem do que ela carrega em si, mas consigo. A mulher é linda quando sua beleza transborda de dentro para fora. Porque a beleza, mulheres, mora na despretensão.
                                                          Foto: Geoffroy Demarquet

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Miniconto da porcelana

A boneca do pote de vidro jamais saiu de seu mundinho de porcelana.
E preferiu a vida desgraçada daqueles que só se levantam com o pé direito. Sua vida miserável a confortava. E branca, pálida e fria, como o mármore, morreu feliz e enganada, como todas as bonecas.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Não perco essa mania

Eu pensei em voltar a sua rua, bater na porta e dizer que estava arrependido. Pensei em deixar o orgulho de um lado, a vergonha do outro e tocar a campainha como se começasse agora. Assim mesmo eu te convidaria, para começar tudo agora. Não é questão de voltar atrás, nem de persistir no erro. Acontece que pensei em você semana passada. E na outra também.
Na verdade, penso em você quase que todos os dias e por isso pensei em voltar e te contar isso. Não sei se adiantaria alguma coisa, já que ouvi dizer que você não quer nem ouvir meu nome. Outro dia fingi que te ligava por engano, só para ouvir você dizer que eu não perco essa mania de te procurar. Você não atendeu e eu percebi que devo gostar de perder meu tempo com você.
Se eu pedisse para alguém lhe interfonar, dizendo que esperava aqui embaixo, será que você desceria? Quase joguei uma pedra na janela do seu quarto. Será que te acertaria o coração? Pensei que você pudesse abrir a porta e me servir alguma coisa. Pensei em, quem sabe, pegar a sua mão e te fazer lembrar de como você ficava quando eu fazia isso antes. E se, de repente, eu fosse entrar na sua casa? E se, por acaso, eu não saísse mais da sua vida?