sexta-feira, 18 de junho de 2010

Ciúme vira-lata

Meu cachorro não tolera que toquem o interfone. Basta um mínimo som e ela já começa a latir, desesperadamente. Não se incomoda com quase nada, mas o barulho do interfone é uma afronta a sua integridade. Mas eu entendo porque. Interfone é a ameaça presente, é a certeza da invasão. Meu cachorro entendeu que quando ouve aquele barulho, significa que alguém vai invadir seu território, mexer nos seus ossinhos e quem sabe, leva-lo embora. Veio da rua e teme o retorno, mesmo que já tenham se passado tantos anos. Meu cachorro tem ciúme de mim.
E assim somos nós, exatamente como meu cachorro. Somos vira-latas no amor. Mesmo com a segurança do lar, tememos voltar para as ruas. Mesmo tendo ração no pote e carinho na barriga, temos a impressão de que a qualquer momento alguém vai tocar o interfone do coração dela e invadir o território que era só seu.
Assim faz o ciumento, antecipa o toque. Acha que qualquer barulho é o do interfone e entra em desespero. Controla as chamadas, as mensagens, os emails, a vida. Desejo no outro um fantoche das suas vontades.
As vezes o toque do interfone é inevitável. As vezes, alguém tem mesmo que invadir o seu território e te tirar de lá, com os ossinhos e tudo.
O ciumento é como meu cachorro. Nem todo latido é preciso. Mas é preciso latir. Late porque gosta. Late porque tem ciúme. Late porque não me quer longe.
O ciumento quase nunca late sem sentido. Todo latido tem um fundo de verdade.

sábado, 12 de junho de 2010

Não quero parecer maluco

O que eu faço com essa coisa aqui dentro? Já que você não quer dividir comigo, então me diga: Em que lata eu coloco esse lixo para ser reciclado? Porque uma coisa bonita dessas não pode ser jogada fora. Uma vontade boa dessas não pode ser posta numa esquina, como uma tábua de madeira sem uso.
Estranho como essas coisas acontecem. Um dia, somos invadidos por alguma coisa que domina a gente, mesmo sem a gente querer. Eu não queria. Eu tentei resistir bastante, aliás. Mas não dá! Como resistir ao seu cabelo seguindo o vento e revelando a sua nuca? Como ficar imparcial ao jeito que você olha quando gosta de alguma coisa? E quando você toca a orelha? Adoro quando você toca a orelha. Eu não sei bem explicar. Te fito de longe. Não quero parecer maluco. Como explicar o que é você atravessando a rua? O sinal fecha até no verde. Carro nenhum se atreve de passar. Até os pedestres param. Teu cheiro doce não enjoa. Tua pele branca não cega. Tua boca vermelha não me sangra, me convida a vampirizar teu sangue, gota a gota.
Me esforcei para ficar indiferente. Eu juro que tentei. Mas não deu. E agora, você me diz que não pode ser. Me diz que eu não sou quem você procura. Ou que não atendo aos seus requisitos. Então tá. Você não pode ser mais forte que a minha vontade. Tome meu amor e me deixe ir embora. Mesmo que eu queira ficar. Mesmo que eu deixe a porta encostada e demore a apertar o botão do elevador, esperando que você mude de idéia. Mesmo quando a minha vontade é você. E só. Você.

Carta para Carpinejar

Pensei muito sobre te mandar ou não esse email.
Primeiro, porque julguei – de certa forma - desnecessário, já que você, enquanto escritor publicado, já teria ouvido diversas opiniões, sejam contrárias ou favoráveis, trocentas vezes mais conceituada que a minha. E segundo, não sou de fazer tietagem, principalmente virtual. Mas cá estou...
Não teria outro assunto para colocar no corpo do email do que 'Obrigado'. Obrigado! E isso me basta. Isso é tudo que eu queria dizer. Aliás, pra mim, esse obrigado tem mais de dez mil caracteres. Mas como você não é vidente, deixa eu explicar: Comprei um livro-porcaria ( assim mesmo, com hífen! ) e necessitei ir até a livraria me livrar daquilo. Estava disposto a tudo: vender, doar, queimar... mas graças a Deus sugeriram a troca. Quando a mulher me perguntou: “- E que livro o senhor gostaria?” me deu um branco total. Minha lista de livros ( pra comprar ) é sempre gigante, mas eu não lembrei de nenhum. Olhei para o lado na tentativa de permanecer seguro e me deparo com uma capa um tanto estranha: uma moça, uma neblina e um título que me gritava na cara “Canalha!”. “- Quero esse.!”
Lembrei que já tinha ouvido falar de você. Minha memória, que sempre esquece de lembrar, matou a charada: era um escritor que a Ana Carolina já tinha falado uma vez. Um cara aí.
Meio desconfiado, ia ler a primeira crônica. Lembrava que o prazo de troca da livraria já havia acabado, ou seja, era esse e acabou. “Canalha!”.
Li a primeira, fui pra segunda, emendei na terceira... quando dei por mim estava na página 32. Trinta e dois! Trinta e duas páginas haviam se passado por mim, como se eu tivesse tirado uma soneca depois do despertador tocar. Como poderia? Como eu não tinha sentido?
Tentei resistir. Deixei o livro de lado. Mas foi inútil. Acabei o livro como ejaculação precoce, muito antes da expectativa. Virei propagandista de Carpinejar. Desde Fevereiro faço campanha. Sou um mercenário das letras. Um mecenas da modernidade, que vende sua imagem em troca de textos.
Não sei se você vai chegar a ler, porque estou mandando para o primeiro email que eu vi. Mas eu precisava tossir isso tudo, que estava entalado a alguns meses.

Obrigado!
Yke Leon

terça-feira, 20 de abril de 2010

Lembranças-câncer

  Certa vez ouvi um médico falando que “o câncer é uma célula que esqueceu de morrer”. Essa explicação me fez lembrar que na vida, tudo tem seu prazo de validade. As vezes evitamos o começo, que até pode não acontecer, mas o fim é inevitável. Sábio o poeta que disse que o eterno só existe enquanto durar. Ele viu o que fingimos não ver.
  As lembranças são como as células. As piores lembranças são aquelas que esquecem de morrer. Anulam o fim, tapam os olhos e se acreditam no presente. Foi passado. É passado. Mas elas ignoram e fingem não ver. Pretensiosas, agem como se existissem. Vez ou outra confio numa dessas lembranças-câncer e faço tudo errado.
  Preciso de tratamento. Vou ligar para o plano de saúde e ver o que eles cobrem. Será que eles tem quimioterapia na memória? É disso que eu preciso.

sábado, 17 de abril de 2010

Amor financeiro

 Todo amor, no início, é como a bolsa de valores. Não importa quanto se ganha ou quando se perde, tudo estava no risco do investimento. Arriscamos muito, arriscamos tudo, que temos e não temos, pra fazer dar certo. No início todo investimento vale a pena. O prazer é a incerteza da próxima noite. Cancelamos compromissos, inventamos coisas e criamos situações. Arriscamos.
 Mas com a segurança e o tempo, a panela de pressão vira chaleira. Como a criança que abandona a chupeta, vamos ficando cheios daquele amor. Ora, pra que investir, se sabemos que já está lá?
Abandonamos as roupas novas, as histórias novas e viramos acomodados do amor. Do mesmo amor que fazia a gente arriscar. Se antes o amor era investimento na bolsa de valores, agora ele é conta-poupança. E a gente, vai sobrevivendo dos rendimentos desse amor.

quarta-feira, 31 de março de 2010

Cinco dedos e duas mãos

  Nunca fui da turma dos que queriam pouco. Meu problema sempre foi querer demais. Querer mais do que cinco dedos são capazes de pegar, mais do que as duas mãos juntas conseguem agarrar. Nunca desejei menos, nunca quis pouco. Sempre padeci de excessos.
  Até na dúvida, escolho no exagero. Quase não me lembro de alguma vez em que não tive escolha. É melhor ter que escolher entre alguma coisa, do que não ter o que escolher. Isso sim é pior. Escolher entre o nada e o coisa alguma me soa angustiante. Sempre padeci de excessos. Sou um inveterado da quantidade.

terça-feira, 23 de março de 2010

Jogo da vida

 As vezes eu acho que a vida joga no meu time. Que toca pra mim, me convoca a fazer tabela, cabeceia meu escanteio e empurra a bola para nada atrapalhar minha falta. E quando isso acontece, o time todo fica em sintonia. Mas de repente, não sei bem dizer quando, a vida parece que toma um cartão vermelho e ao invés de só ficar de fora, resolve jogar no outro time. Arma contra mim. Cria jogadas ensaiadas. Domina a situação de tal maneira que me faz até fazer gol contra.
 E é nesse girar da moeda, quando a cara vira coroa e a vida muda de time, que ela parece jogar melhor.

terça-feira, 9 de março de 2010

Gente vazia


 Não tenho paciência pra gente vazia. Não que eu me ache excepcionalmente cheio, mas com gente vazia, fujo de me misturar. Quando encontro um desses sujeitos vazios, seja de sentimento, de compaixão, de afeto, de respeito, trato logo de me afastar. Pior é quando encontro quem é vazio de tudo, esses acabam se perdendo na própria vastidão.
 Não que sejamos limitados e à medida que a coisa avança, ficamos cheios e temos que nos esvaziar. A possibilidade humana é infinita! Não entendo como num mundo com tanta coisa a espreita, vamos nos pautar logo em exemplo vazios. Vazios de exemplicidade.
 Engraçado que gente vazia se acha cheia: de razão, de atitude, de coragem. Chatice! Eu achava que gente vazia podia se conhecer. Todos eles. Conhecem-se, misturam-se e com o oco dos seus corpos, preenchem-se. É quase como uma ajuda. Um vazio é só um vazio, mas um monte de vazio até dá um cheio. Não garanto qualidade, não garanto que será um cheio de se admirar... mas e daí? Ainda que não seja só um vazio, está valendo. Eu acho

Licença de parar

Passa vida,
Passa a farra
Passa a agitação

Passam as moscas
Passam as flores
Passam na estação
Passa num ano

Passa o seu vizinho
Passa o seu João
Passa o manequinho
Passa o vendedor de pão

Passa rápido
Passa voando
Todo mundo passa andando

Dou licença então,
já que todo mundo tá passando
E peço licença também,
as vezes quero ir parando

Poema feio

Começo querendo escrever um poema
Me deixo levar pelas linhas, rimas,
pelo som das liras...
Mas aí nada rima
Nada flui naturalmente
Fica tudo engessado,
duro,
oco!
Queria escrever um poema
Desses bonitos, como os que eu gosto
Versos Quintanos, Carpinejanos,
mas não dá!
Não sou desses.
Nasci pra versos feios
Sem rima
Amontoado de palavras

Mas não vou reclamar
Se assim for
Se meu divinatório dom for o de poemas afeados
Quem há de se importar?
Se os poemas são como filhos
Talvez eu tenha essa vocação
Talvez, tenha nascido só pra ser isso
Pai de poemas feios