quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

O que aprendi com Tracy


   Quando mais novo, dividia espaço com uma husky siberiana de nome Tracy. Na verdade, o espaço era dela e eu o invadi quando nasci. Ela reinava no terraço já fazia uns três anos quando eu apareci. Fazia dali seu reino e marcava território com ossos, bolinhas e algum punhado de ração. Tracy era a dona da casa e, eu, um intruso.
   No começo nos estranhamos. Ou melhor, ela me estranhou. Protegido pelos muros maternos, ela não era capaz de rompê-lo e ver a criatura que existia por trás dele. Era alguém que chegara tirando espaço, atenção e carinho. E ela, tudo que podia fazer, era me olhar de longe para tentar compreender porque perdera, de uma hora para outra, todo seu patrimônio. Agora era espaço para dois. Carinho para dois. Uma linha no meio separando os dois mundos. Era tudo meio humano, meio animal. E assim o tempo foi passando para os dois.
   Eu engatinhando e ela crescendo. Viciei na chupeta e ela crescendo. Eu andando e ela crescendo. Eu entrei na escola e ela crescendo. Passei do gemido ao bê-á-bá, abandonei a chupeta para me viciar na mamadeira, e ela crescendo. Parei de fazer xixi na cama, parei de procurar a cama dos meus pais, conheci a programação da TV e ela continuava crescendo.
   Até que um dia eu aprendi a correr com as próprias pernas e ela teve medo de descer as escadas. Aprendi a nadar e ela passou a fugir da água. E aprendi a andar de bicicleta, mudei de endereço e descobri que não levava jeito algum para andar de patins. E ela, continuava a mesma. Não havia mudado nenhuma parte. E então eu percebi que, a partir de então, quem crescia era só eu. Ela, agora, estava envelhecendo.
   Eu descobria, ela esquecia. Eu saía, ela ficava. Eu corria, ela parava. Eu gostava, ela resmungava. Eu mexia, ela empurrava. Lambia meu afeto mas rosnava para o meu carinho. Como um lobo que renega a matilha, nunca mais foi vista pela rua. Era agora refém de sua própria companhia. Todas as noites admirava a lua e gritava com seu uivo, como quem se cansa da vida e pede para ir embora. Assim foi Tracy quando atingiu os quatorze humanos anos. Já carregava em seus grisalhos pêlos nove e tantas décadas caninas. E dizia isto por seus olhos bicoloridos que, a essa altura, já estavam cansados de ver. Chega uma hora em que se enxerga melhor de olhos fechados.
   Certo dia, Tracy amanheceu estranhamente cansada. Acordou com a cabeça sob o pote de comida. As patas sustentavam o já cansado corpo, que chorava como quem não agüenta mais sustentar a própria alma. Seu rim parou de funcionar e ela queria urinar. Tracy queria comer, mas seu estômago já não se alinhava com o resto do corpo. Tracy estava cansada da vida. Tracy pedia por seus olhos para morrer. E foi então, numa bela manhã de sol, que Tracy, nos braços de meu pai, se despediu da vida.
   Não deixei acontecer. Não conseguia entender o que estava acontecendo, mas não ia deixar ela ir embora assim. Não agora. Lembro que pedi para ela parar de ficar velha, afinal, chegaria uma hora em que a gente ia poder envelhecer juntos. Pedi para ela levantar. Pedi para ela parar com aquela brincadeira. Na minha cabeça, Tracy brincava de morrer. Ela não viu o Natal daquele ano, nem o ano novo que em breve começaria. Tracy não ia mais usar coleira. Não ia mais ganir tentando fugir do banho. Não ia mais uivar para a lua. Nunca mais me veria fazer aniversário. E crescer mais. E depois envelhecer como ela. Tracy não veria nada mais a partir daquele último suspiro. Assim como uma luz que se apaga, seus olhos eram todos escuridão.
   Andei pela casa catando todos os cabelos caídos de seu corpo morto. Pêlo por pêlo, amontoava-os em minha mão. Coloquei todos embaixo de meu travesseiro. Minha mãe tentou impedir. Perguntou, em meio à cara chorosa, o que eu faria com aquilo. E eu respondi que ia fazer uma outra Tracy igual. Cabelo por cabelo, ia construindo Tracy na minha cabeça. Ia trazê-la de volta. Ainda que não fosse capaz, tentaria. Inventava seu novo jeito. A cor dos olhos que ela teria. A extensão de seu corpo. A disposição de sua corrida. Já estava pronta na minha mente.
   Já amava o que nem conseguia ver. E já cansava de imaginar seu pique. Já ria de suas manhas. Tracy era real, ainda que fantasiada. Eu já amava o que só existia na minha imaginação.
   Um amor inventado nem sempre é mentira. Aprendi com Tracy que inventar já é, quase sempre, um ato de amor.

2 comentários:

RODRIGO BARROS disse...

Ah, então aí está a cachorrinha, a tão celebrada Tracy.
Caro amigo Yke Leon, a vida é assim mesmo. Nascemos, crescemos, morremos... Nós, as plantas e todos os outros seres que habitam nosso planeta, temos prazo de validade. A única certeza é que todos vamos para algum outro lugar, em algum momento da vida, até mesmo os animais. O ser humano insiste nessa forma egoísta de amor. Uma maneira possessiva de lidar com o outro, impedindo-o de viver livremente e até algumas vezes de morrer. Nos esquecemos que tudo na vida tem um momento para iniciar mas não para terminar! E é exatamente esse intervalo de tempo que é a nossa vida. E devemos viver e aproveitar intensamente o que nos for permitido. Sem culpas, medos etc...
A Tracy deve sim estar correndo, pulando, alegre, mas agora em outros terraços ainda mais altos e maiores que o da sua casa. Em um lugar ainda mais livre.
E se vale como reflexão, amigo, fique tranquilo. Assim como ela te deixou ensinamentos, você também deve ter ensinado muito a ela! Só esse texto emocionante já atesta isso.
Leve-a em seus pensamento e no seu coração!
Siga os conselhos que Tracy lhe deixou ainda em vida: lute por sua liberdade, ainda que tentem podá-lo, ou que venham a dividir seu espaço! E seja muito feliz!

Anônimo disse...

Lindo texto caro amigo