quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Ela é divina, mas mortal

E foi assim que, de repente, como um tropeço na linha da própria vida, você dobrou a esquina. Os passos eram os mesmos de antes e a pele, tão ainda clara e iluminada, não me deixariam enganar. Mesmo que fosse noite, mesmo que você não fosse você. Haveria de te reconhecer do outro bairro, por detrás de qualquer muro, ainda que nem soubesse que você andava por aí. Só Deus sabe o ardor na alma, a queimação no estômago que foi te cumprimentar. Eu, que havia me dado por vencido, que havia hasteado a bandeira branca e declarado derrota, arrisquei cortar o silêncio. Você passou como quem não vê, fingindo acreditar que o silêncio do barulho que lhe buzinava as orelhas pudesse lhe tampar os olhos. Talvez você tenha querido que a música te cegasse, mas de qualquer modo, não seria assim se não fosse você.
Espreitando teu caminho, seguindo milimetricamente o contorno do seu braço enquanto abanava seu andar, eu era farol-alto, era outdoor, era desses panfletos-de-rua que devolvem o amor em três dias. Eu era tudo que pudesse ser, só que mais: devolveria meu amor ali mesmo. Entregaria na hora, sem multa, sem atraso, sem cobrança. Nem me importaria com o seu passado, nem me irritaria com as suas lamentações, pois quem errou, ficou – ali, naquela hora, chamei você como quem grita na beira do precipício que o amor ainda é possível. E você virou – e eu, por profunda inabilidade, não sei precisar a quantidade exata de surpresa e temor que moravam no seu semblante naquele momento. Mas você queria. E veio. E então eu vi.
O cabelo agora fazia marquise para o rosto. Era igual, ainda que diferente. Uma versão melhorada de si mesma, como um vinho maturado, parecia corrigida dos erros de antes. O mesmo quadro, outra moldura, igualmente lindo. Miseravelmente lindo, eu diria, daquela boniteza que deixa o pulmão da gente respirando pela metade. A despretensão era a mesma desses outros tempos. Uma espécie de desdenho e humildade de si que só a segurança e o poder podem trazer para alguém. Mas ela - e se você, com quem divido estas singelas memórias, puder aceitar minha modesta opinião- era tudo isso que existia e mais um pouco o que não contava. Ela sabia ser mistério e ternura quando a boca brincava de dançar. Pois eu não minto, e até por isso, verdade seja dita: Beethoven só compunha para piano porque não conhecia a sua boca. Linda, como os anjos todos numa festa celestial.
Eis que, não mais do que de repente, um poste piscou, teve um rompante e explodiu. “Deve ter ficado emocionado de nos iluminar”, pensava eu, enquanto a ouvia contar do tempo perdido e, ao mesmo tempo, também me punha a falar. Mas pelos cílios, pela ponta das unhas, pelos poros da pele. Cada parte do corpo era uma espécie de boca que gritava por ela. Agora pareciam existir dois tempos: o que acontecia com a gente e o que corria lá fora. O tempo da gente era sereno, de um sorriso amarrado no canto da boca, de olhos que brilham mesmo no breu. Já o outro é desses em que o carro freia na hora que uma criança se põe a chorar quando, sem querer, pisa num buraco e ameaça torcer o pé. Mas desse nada me parecia importante.
Enquanto você falava das coisas em que passou a acreditar, eu imaginava tudo que poderíamos ter aprendido juntos em todo esse tempo.  Mas você não parecia ligar, o dia tinha sido agitado – como todos os últimos, aliás – e, no meio dessa montoeira de compromissos e responsabilidades, me explicava como o Cosmos e o Universo conspiram pelo amor. Não poderia concordar, afinal, se assim fosse, o Cosmos e o Universo estariam definitivamente contra mim sem eu sequer ter sido informado de nada. E foi justo nessa hora que outro poste apagou.
Estava tarde, e agora, ainda mais escuro. “Daqui a pouco já é outro dia”, contava você, enquanto gentilmente ensaiava um jeito delicado de dizer adeus. Pareci passar por cima da despedida como se não me importasse e, sorridentemente, lhe acompanhei até a última fresta da sua pele que meu olho alcançava, enquanto trocávamos conselhos para uma vida melhor dali para frente. Você sumiu da minha vista e eu senti como se não tivesse me enganado um só dia depois de todos aqueles meses. Era você que, como apareceu, foi-se embora. Assim mesmo: Linda, desdenhosa, segura e maldita. Absolutamente cruel e maldita. 
Como são todas as partidas. Os amores. E os mortais.
The Stroll - Edouard Manet

2 comentários:

Just Me disse...

Acredito que com todos os escritores, vai chegando um momento onde seus textos são tão maravilhosos que fica difícil encontrar o quê dizer. Mas isso só acontece com os grandes escritores que não nos surpreendem mais. Como um cantor que canta a mesma melodia - sua voz é linda e também a música, mas já não há novidade.

O senhor, seu Yke Leon, é grande e jamais se repete. Sua escrita é ilimitada. Este texto, possui a sua assinatura clara, mas é dono de uma beleza jamais vista antes. Moldado aos olhos de um poeta, pelo coração de um homem que ama.

Esta é a tua obra.
"Absolutamente cruel e maldita.
Como são todas as partidas. Os amores. E os mortais."

Just Me disse...

Ass.: George Luis.